A quadrilha neoliberal e a indústria do pânico

PCC vale-se de métodos de direção e facilidades trazidas pelo neoliberalismo. Direita incentiva pânico generalizado para legitimar propostas repressivas contra organizações populares.

por Gilberto Maringoni*

Ainda é cedo para se avaliar as conseqüências mais profundas dos dias de fúria na área da segurança pública em São Paulo. Tudo indica tratar-se de um acontecimento maior, daqueles em que todas as classes e segmentos sociais ficam obrigados a tomar posição. Quem é capaz de ficar neutro quando a maior cidade da segunda economia da América Latina – seguida de dezenas de outros municípios – tem sua vida econômica, social e cultural paralisada por mais de uma centena de ataques criminosos? E ninguém permanece inerte quando as forças de segurança buscam sair da defensiva e partem para um revide brutal. O saldo oficial de mortes – 37 agentes de segurança e 109 suspeitos – coloca o Brasil no patamar de países em guerra.

Comoções urbanas dessa natureza são raríssimas. Muita tinta já foi gasta para descrever o pânico generalizado entre aqueles que vivem e trabalham no centro expandido da capital paulista, impulsionado por ameaças reais e imaginárias. Boatos de ataques a estações de metrô e agencias bancárias e a notícia de que haveria um toque de recolher a partir das 20 horas forçaram o fechamento antecipado do comércio e de outras atividades produtivas.

Toque de recolher não é novidade para a população dos superpopulosos bairros periféricos das grandes cidades brasileiras, bem como tiroteios e muito sangue a qualquer hora do dia ou da noite. Inédito é o fato de a criminalidade ter colocado de joelhos os aparatos de segurança municipal e estadual, em dezenas de ações surpresa, tão eficientes quanto rápidas.

PCC S. A.

O Primeiro Comando da Capital (PCC), autor dos impressionantes ataques iniciais, não é apenas uma quadrilha a enfrentar a polícia. É uma empresa de médio porte em contínua expansão. Possui um comando centralizado e uma estrutura flexível, funcionando por redes de adesão voluntária, com capacidade de atuação just-in-time e rapidez de decisão.

Poder-se-ia dizer que o crime aderiu à novas técnicas de gerenciamento, característica das empresas atuantes em ambientes desregulados e flexíveis. Uma quadrilha pós-moderna. Coincidentemente, surgiu nas cadeias paulistas em 1993, época da ascensão do neoliberalismo na política brasileira.

A propalada arrecadação mensal do PCC, que resultaria numa receita de R$ 700 mil não é dinheiro de roubo de galinha. É um montante respeitável a circular pela economia formal, em um sistema de lavagem que inclui empreendimentos que giram grandes quantidades de dinheiro vivo em curto prazo, cujos caminhos são difíceis de se detectar. A privatização da CMTC, em São Paulo, por exemplo, resultou num descontrole da contabilidade do setor de transportes. A circulação de dinheiro vivo em empresas desse tipo é enorme. É um convite ao giro de dinheiro não-contabilizado, para utilizar um eufemismo da moda.

Lançados no mercado e negociados como capital de giro e empréstimos de vários tipos, os R$ 700 mil multiplicam seu valor real. Como um montante desses circula sem passar pelo sistema financeiro? Como então acreditar que estamos diante de um cenário no qual há uma divisão clara entre bandidos e homens de bem, entre polícia e ladrão, entre legalidade e ilegalidade e entre “bons” e “maus”? Como crer que o bordão repetido à exaustão há décadas – “bandido é na cadeia” – possa apontar alguma solução, se o “partido”, como chamam seus membros, surgiu exatamente dentro do sistema prisional e, a partir dali, projetou-se para fora? Como crer também que, enjaulado e trancafiado a sete chaves, este comando não tenha ramificações dentro da própria estrutura carcerária?

O PCC desmonta a lógica cartesiana rasteira de combate ao crime. Marcola e os principais líderes da organização já vêem o sol nascer quadrado há mais de seis anos, sem que isso faça frente às suas iniciativas.

Discursos da direita

Se assim é, fica patente que os velhos discursos conservadores de “bandido é na cadeia”, mais repressão, mais jaulas, mais liberdade de ação para a polícia, pouco ou nada tem de eficiente. Seus proponentes muito possivelmente sabem de sua inutilidade, diante de uma situação nova.

É preciso atentar para as nuances existentes nesse fraseado. Há a tradicional formulação neandertahl e tosca de “pena de morte já!” e suas ramificações na intolerância de setores da classe média contra pobres, negos e nordestinos. E existe a variante sofisticada, brandida pelo ex-prefeito de São Paulo, José Serra, em inexplicável artigo, publicado com direito a chamada de capa, na Folha de S. Paulo de domingo (21). Antes de lermos o que o candidato do PSDB ao governo paulista escreveu, vamos lembrar de suas andanças recentes.

Serra está se tornando um PhD em se fingir de morto. Logo após a indicação do ex-governador Geraldo Alckmin à candidatura presidencial, o ex-alcaide saiu de cena por mais de duas semanas, alegando problemas de saúde. Agora, quando explode a questão da segurança, ele abstém-se de dar qualquer declaração por exatos oito dias, período em que trafegou pelas ruas de Nova York. Sabedor do desgaste que a administração estadual colhe com o apagão na área de segurança pública, Serra diz o seguinte:

“Às pessoas de bem só cabe uma postura [diante do ocorrido]. De maneira clara, direta, insofismável, sem ambigüidades, é preciso dizer: ‘Somos contra o crime; somos contra os criminosos que nos desafiam, que desafiam as leis, que desafiam as regras da convivência civilizada, que desafiam o poder público, síntese da vontade de todos os cidadãos’".

Mais adiante, ele escreve:

“A crítica ao Judiciário, aos governos, à polícia, ao Ministério Público, à legislação, à desigualdade social, às falhas do sistema educacional, tudo isso pode ser mais ou menos pertinente. Mas é preciso distinguir o essencial do circunstancial. E o essencial é identificar o inimigo. Até para que não se cometam injustiças fazendo baixa sociologia”.

No fim, José Serra propõe o endurecimento penal aprovado por comissão do Senado Federal. Nas palavras do peessedebista, a questão toda é dividida, de forma maniqueísta, entre “pessoas do bem” e do mal. Coisa de gibi.

O pânico como intimidação

A retórica agressiva da direita tem objetivos pouco evidentes. Trata-se de usar o pânico como elemento de coação social, a justificar um endurecimento da legislação e dos mecanismos repressivos. O alvo é não apenas a criminalidade explícita, mas a intimidação do movimento popular, através da geração de uma sociedade policial. Não é à toa que editoriais e artigos de grandes jornais tentam a todo custo colar, por exemplo, no Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), a pecha de “quadrilha” ou de “terrorista”. Criminalizar e intimidar organizações populares é uma das metas mais claras do conservadorismo. Com um agravante: o surto repressivo pode ser desencadeado com ampla legitimidade de uma sociedade – especialmente a classe média – apavorada.

Pode-se fazer uma analogia com o clima repressivo criado pelo governo dos Estados Unidos após o 11 de setembro de 2001. O mote de “endurecimento” é o caldo de cultura para situações perigosas já vividas no Brasil e em outros países. É bom lembrar que, na semana anterior ao ataque do PCC, a direita brasileira amargara uma derrota no terreno das idéias, no episódio da nacionalização do gás boliviano.

Externando discursos intolerantes de pretensa defesa nacional, sua pregação caiu no vazio diante da realidade. Agora ela agarra-se à tábua da insegurança em seu coro dirigido especialmente à classe média.

Afinal, a classe média correu mesmo riscos naquela segunda-feira (15) caótica? É difícil dizer. Mas alguns fatos devem ser notados: embora alguns assaltos tenham acontecido naquela segunda no centro expandido da capital paulista, praticamente não houve mortes. Quem pagou com a vida foram policiais empobrecidos, pegos de surpresa pela absoluta incapacidade de planejamento da Secretaria de Segurança e a população da periferia. Quase a totalidade das 109 mortes de civis aconteceu em bairros pobres e periféricos. Já existe uma geografia humana e uma característica de classe na matança desses dias.

Por mais que o neandertahlismo tente chamar as vozes discordantes de “baixa sociologia”, é sempre bom lembrar onde o crime viceja. É no país com a pior distribuição de renda do mundo, no qual a juventude entre 15 e 24 anos enfrenta taxas de desemprego de até 50% e onde a propriedade da terra e os meios de comunicação estão, em sua maior parte, nas mãos do topo do topo da pirâmide social.

Esquecer dessas questões fundamentais não é fazer alta sociologia. É fazer a apologia da barbárie.

Mercado não sentiu

Ao mesmo tempo em que São Paulo vivia seu inferno astral, o chamado “mercado” não estava nem aí. O que importou mesmo na semana passada foi a expectativa de alta dos juros nos EUA e a vulnerabilidade externa da economia brasileira. Esse fato contribuiu para seguidas quedas na bolsa de valores de São Paulo e uma pequena alta do dólar. A venda de moedas e títulos brasileiros por parte de grandes conglomerados, que migraram para posições mais seguras na bolsa de Nova York, não tem nada a ver com PCC ou corre-corre nas ruas da capital paulista.

A Folha de S. Paulo de quarta-feira (18) trouxe a declaração de Maristella Ansaldi, economista-chefe do Banco Fibra: "Em termos de imagem [no exterior], é bastante ruim a violência que atinge a cidade. Tem atrapalhado um pouco os negócios, mas não chegou a afetar ainda os preços dos ativos".

Em outro segmento do mesmo mercado, aquele que rege a vida dos nababos – o topo do topo da pirâmide social – também não havia maiores preocupações. Os jornalões paulistas apresentaram generosas páginas de anúncios com o slogan: “Prepare-se. Neste sábado você vai conhecer uma nova perspectiva de vida”. A farta publicidade é centrada no empreendimento Parque Cidade Jardim, na zona sul de São Paulo, conjunto de nove torres residenciais, com apartamentos vendidos por até R$ 18 milhões. Cerca de cem apartamentos, com valores a partir de R$ 2 milhões já foram vendidos. A única referência à situação da semana, na Folha de S. Paulo, da mesma quarta-feira, foi que “Por motivos de segurança, a empresa não revela o nome dos compradores”.

*Gilberto Maringoni, jornalista e cartunista da Agência Carta Maior, é autor de “A Venezuela que se inventa – poder, petróleo e intriga nos tempos de Chávez” (Editora Fundação Perseu Abramo). Foi observador, a convite do CNE, do processo do referendo revogatório na Venezuela.