Morte no Morumbi: As grades que nos separam

Uma coisa que sempre fiz foi questionar os próprios fatos e princípios que acreditava em busca de coerência: desde coisas triviais a assuntos sérios. Depois, descobri que isso tinha até nome: dialética. É um método de diálogo que consiste na contraposição e contradição de todas ideias possíveis para depurá-las. Em suma, é fugir do óbvio e enxergar o todo.

Por Pedro Buccini, no blog Timoneiros*

Torcedores saltam grades divisórias no anel superior do estádio do Morumbi

O óbvio no caso da morte do são paulino Bruno Pereira, 23 anos, original de Pindamonhangaba, que assistia pela primeira vez uma partida de seu time do coração no estádio, no Majestoso do último domingo, é que ele morreu por tentar mudar de setor de forma irregular, ao pular as grades divisórias do local onde adquiriu ingresso para acessar o setor destinado às torcidas organizadas. Foi uma escolha individual – possivelmente por não apurar corretamente os riscos reais. A irresponsabilidade e imprudência são claras. Ninguém poderá questionar isso.

Mas o que está por trás da decisão de tentar pular as grades divisórias? Qualquer corinthiano que já comprou ingressos nas cadeiras laranjas do Pacaembu já viu torcedores pularem para a arquibancada amarela. A intenção é óbvia: estar dentro da festa, no local onde ela é mais frenética. Um desejo comum, especialmente para quem nunca esteve ali. Portanto, Bruno recorreu a forma irregular de trocar de setor porque há setorização dentro de um mesmo anel de arquibancada.

E é necessária esta setorização para poder segregar a torcida de acordo com as mínimas diferenças econômicas e, desta forma, obter o maior lucro possível na comercialização dos ingressos. Não é admissível a possibilidade de um centavo escapar. Este ponto definitivamente nunca é discutido. Aliás, existe um silêncio subserviente a tudo que se refira ao dinheiro. É como se fosse uma verdade absoluta e necessidade intrínseca de um estádio. Mas não o é.

Gostaria de comentar dois pontos: a possibilidade de não existir setorização em um mesmo anel de arquibancada (atente-se a esta expressão inteira) e, na existência de setores, de uma forma mais racional e humana de realizar as divisões. Começo por esta.

Apesar de não gostar totalmente, cito o não-exemplo do asséptico futebol inglês. Lá não existem grades de nenhum tipo para realizar a separação dos setores. Qual a precisão desse expediente? Na América do Sul, o torcedor é, infelizmente, tratado como “gado”, um animal selvagem, da mesma forma como um criminoso – que também não deveria ser tratado como um animal se a intenção do Estado é reintegrá-lo à sociedade. Não quero entrar na discussão de que esse tratamento gera uma atmosfera de conflito, mas é necessário mudar a forma de se encarar o torcedor. É urgente se alterar o controle de segurança, saindo da esfera da polícia militar. Tampouco entrarei neste mérito, pois a discussão seria ainda mais longa. Mas se a arquitetura molda o indivíduo, a setorização precisa ser realizada por corda ou por cordões de seguranças do estádio. Por sinal, em Itaquera, a divisão dos setores nomeados como “escanteios” nas arquibancadas Leste e Oeste é realizada assim.

Mas analisando o todo, precisamos também questionar a existência de setores em um mesmo anel de arquibancada. Ora, o anel de arquibancada deve ser um setor inteiro, um todo que possibilita a circulação, integração e confraternização dos torcedores. Como já foi um dia no Pacaembu, Palestra Itália, Maracanã, Beira-Rio (em todos, com exceção da numerada) etc… Por isso, existem outros anéis de arquibancada inferiores ou superiores. O Tobogã do Pacaembu é um bom exemplo de uma divisão concreta, portanto, sem a necessidade de divisórias.

Por fim, gostaria de contextualizar essa lembrança de como era a organização dos estádios. Recordá-la é uma demonstração das possibilidades reais que temos e não o desejo de um retorno ao que foi, até porque não é possível este retorno. No futebol ou em qualquer segmento da sociedade, não é possível regressar a uma forma ultrapassada, mas somente criar novas diante das necessidades e dificuldades que encaramos em nossa vida cotidiana – que não inevitavelmente serão melhores parcial ou completamente do que as formas antigas, como demonstra a alternativa de setorização com grades em resposta a exigência de organizar e dar mais segurança aos estádios de futebol.

Felizmente nunca mais teremos estádios superlotados, com risco iminente de mortes por motivos dos mais variados. O que está em nossa cara agora é a imposição da abolição das divisórias fixas – e a possibilidade da extinção de setorização em um mesmo anel de arquibancada – para que o torcedor seja tratado de maneira mais adequada naquilo que ele é: um ser humano.

Bruno deixou dois filhos: Enzo Gabriel, 3 anos, e Ana Líva, 10 meses, que moram com a mãe Bianca, 21 anos. As crianças são a maior preocupação da família paterna e materna. Também deveriam ser do clube e da sociedade.