Guadalupe Carniel: A violência nas arquibancadas

“A arquibancada é da sociedade.” Mas até onde isso é verdade? Eu mesma já falei isso mil vezes. Na vitória do Brasil sobre o Paraguai por 3 a 0 essa expressão mostrou que é meia-verdade.

Por Guadalupe Carniel*

Seleção Brasileira comemora gol na partida contra o Paraguai, na Arena Corinthians - Lucas Figueiredo/CBF

Mas pra falar disso, primeiro tenho que falar de violência. Normalmente, usamos essa palavra pra falar de agressão física ou verbal. Mas ela vai além: tem forma estrutural e cultural, em geral sendo bem pior do que a primeira forma citada, já que ela é legitimada pelo Estado.

As coisas se encaixam. Vou explicar a frase do começo do texto: ela não representava nem um pouco o reflexo de seu povo, do povo brasileiro na sua totalidade. O ingresso mais barato por 100 reais (meia entrada) e o mais caro por mais de R$500 em camarote com direito a show sertanejo (quem paga por esse tipo de ingresso quer ter qualquer experiência, menos a do futebol; ele é apenas um mero detalhe e serve pra fazer check in e selfies para as redes sociais, nada além disso).

Soma-se a isso a alimentação, que dentro de arenas tem um valor absurdo e o transporte. Que aliás, se o torcedor não tiver carro ou morar perto sofre, afinal o horário do jogo não condiz com o do funcionamento dos transportes; se tem que pegar alguma baldeação, ou outra(s)condução(ões) fica impossível ir ao jogo. Isso tudo sem citar a camisa canarinho que custa três dígitos, o que não condiz com um orçamento familiar brasileiro normalmente, ainda mais em tempos de recessão econômica.

Vi nas redes muita gente reclamando e elogiando o comportamento na Arena. Primeiro, dos que reclamaram: o grito de "bicha" que infelizmente tá enraizado no nosso futebol. Muitos falam que é querer dar uma de politicamente correto e deixar o futebol sem graça; mas na minha opinião não passa de um grito bobo, sem graça e homofóbico. Tem os que defendem porque veio do México, então é legal porque veio de fora. Pouco me importa de onde veio, ele tem que acabar. Dá pra alentar muito bem sem ser machista, homofóbico ou racista. O brasileiro é um dos povos mais criativos do mundo, é só se esforçar um pouco.

Mas tiveram elogios: a torcida com sinalizadores e com cantos distintos do mais que cansado “sou brasileiro com muito orgulho e com muito amor”. Ok, a iniciativa é interessantíssima, mas temos que ver de onde vieram esses cantos, quem são esses grupos e quanto durarão já que quem normalmente vai em jogos do Brasil não frequenta normalmente estádio. Além disso tem os sinalizadores: pergunte se o Brasil será punido por isso. Quando é em alguma seleção ou algum time de fora é lindo; se é aqui em torneios regionais ou nacionais são vândalos. Mas quando é um público mais elitizado, tá tudo certo. Ao povo é vetada a participação ou a festa mesmo que por alguns minutos serve para esquecer a agonia do dia a dia.

O porquê eu falei de violência? Porque tudo isso é violência estrutural; o preço dos ingressos, horários absurdos, jogos em locais de difícil acesso, restrições policiais, tudo isso é violência estrutural; o que a torna mais impiedosa é o fato dela ser aceita pela sociedade. Quando alguém questiona isso ou reage fisicamente na realidade é só a ponta do iceberg; tem-se que questionar tudo o que veio antes para que resultasse nisso. Uma torcida que se comporta como uma vaca hindu e é elitizada representa apenas uma parcela do povo. O restante da população (ou da torcida) tem apenas o direito de acompanhar de casa ou do bar. A festa é pra poucos. Pode comemorar a classificação pra Copa, Brasil.