Crise nas livrarias: a única saída é pensar em uma saída

Assim começou março de 2017 para as livrarias: a tradicional Livraria República, na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, não aguentou o baque de professores sem salários e alunos sem aulas, anunciando o seu fechamento; e a Fnac francesa informou o desejo de se livrar da filial brasileira. Antes, em fevereiro, soubemos que Saraiva e Cultura planejam uma fusão. Pequenas e grandes livrarias se veem com problemas: afinal de contas, o que estamos vivendo?

Livraria - Reprodução

As dificuldades enfrentadas pelas livrarias hoje são apenas o sinal mais evidente de uma combinação de crises que atinge o mercado editorial: temos uma crise internacional que completa nove anos em 2017; temos também uma crise econômica no Brasil – finalmente atingido pela recessão mundial em fins de 2014 – que se aprofundou mais ainda com a dose cavalar de remédios amargos do governo em exercício, cujo compromisso com os eleitores pobres tende a zero; e, finalmente, temos uma crise tecnológica que alcança o setor: empresas com acesso ao big data sabem tudo sobre os nossos hábitos e gostos, enquanto os ganhos digitais que favoreceram as reduções de custos das pequenas empresas do setor nas últimas décadas parecem se esgotar.

Soma-se a isso a desproteção do setor do livro para essa entrada avassaladora de capitais e empresas transnacionais, que a Amazon representa como ninguém: nunca houve no país uma política que fosse além da isenção de impostos para o setor, algo que realmente direcionasse o enraizamento de uma distribuição nacional e favorecesse o livro e a leitura por todo o país. Basta lembrar que só nos anos 2000 conseguimos concluir um programa chamado “uma biblioteca em cada município”.

O Plano Nacional do Livro e Leitura, federal, e planos estaduais e municipais – destaco especialmente o Plano Municipal do Livro, Leitura, Literatura e Biblioteca de São Paulo – preocupam-se com a economia e com a compreensão de que o livro, sem prejuízo de seu caráter cultural, que dá sentido a sua existência, é também uma mercadoria. Mas será que os economistas preocupam-se com o livro em tais termos? Os economistas liberais encaram o livro como uma mercadoria a mais, que tem de sobreviver apenas por suas “belas” qualidades; já os mais intervencionistas veem o livro como uma mercadoria menor, porque gira poucos recursos, quando comparada com qualquer outra. Ou seja, o livro é um setor cuja singularidade não merece ser estimulada.

Assim, preconceitos à direita e à esquerda freiam um debate fundamental, que impacta diretamente a formação de leitores e, portanto, a própria sobrevivência das livrarias, que é estratégica num país que defenda, de fato, a educação e a cultura. A livraria não é sinônimo de leitura, assim como a farmácia não é sinônimo de saúde, mas por que aceitamos viver num mundo com poucas livrarias e reclamamos tanto se não há uma farmácia perto de casa?

O filósofo francês Denis Diderot (1713-1784) já pensava, ali por 1763, 1764, na questão, e traduziu isso num texto com um longuíssimo título: Carta Histórica e Política Endereçada a um Magistrado sobre o Comércio do Livro, sua Condição Antiga e Presente, seus Regimentos, seus Privilégios, as Permissões Tácitas, os Censores, os Vendedores Ambulantes, a Travessia das Pontes do Sena e Outros Temas Relativos à Política Literária. Como o título gigante demonstra, o negócio do livro é uma questão nunca simples, e assim devemos tratá-la (uma tradução com o título resumido Carta sobre o Comércio do Livro foi publicada pela editora Casa da Palavra em 2002).

A diversidade no mercado livreiro é fundamental para quem preza o conhecimento e a democracia. Chamamos a isso de bibliodiversidade, e isso implica pensarmos que os projetos editoriais precisam refletir as diversidades culturais, étnicas e sociais do país, para que uma voz não se sobreponha à outra. Além da liberdade de expressão, precisamos prezar a igualdade de expressão.

Em 1981, quando a Fnac ameaçava acabar com a rede de livrarias independentes francesas, o governo de François Mitterand adotou a Lei do Preço Único, que limitava o desconto de preços nos lançamentos, por um período de dois anos. Assim, o leitor saberia que o livro custaria quase a mesma coisa na Fnac ou numa pequena livraria francesa. Quem primeiro defendeu essa lei não foram as livrarias, mas os editores.

É preciso ressaltar, no entanto, que não era apenas uma “esquisitice” francesa: Alemanha, Portugal, Espanha e muitos outros países adotam, por convenção ou por lei, o preço único. A lei pegou, e a Fnac não deixou de crescer – o mesmo acontecendo com as livrarias francesas: hoje o país se orgulha do fato de que toda comuna tem sua livraria. O preço do livro não subiu, porque essa lei favorece a circulação de todos os títulos, a imensa maioria dos exemplares, e não de uns poucos best-sellers. Uma segunda consequência da lei, menos direta, é que a venda de espaços nas livrarias tornou-se menos interessante, reduzindo os gastos de marketing do setor, direcionando esse capital para investimentos produtivos.

No Brasil, a Fnac, como todas as grandes redes de livrarias por aqui, resistiu historicamente à adoção da lei do preço único – há um projeto de lei tramitando no Senado sobre o tema, de autoria da senadora Fátima Bezerra (PT-RN). Mas, conhecendo a trajetória do grupo, é possível dizer que ele é, depois do cidadão leitor francês, o grande beneficiário da restrição.

No anúncio do conglomerado francês sobre a intenção de deixar o Brasil – intenção desmentida, sem nenhuma substância, pela filial –, pouca gente notou que o grupo controlador não se chama mais Fnac, mas Fnac Darty. Sim, em 2016 a Fnac se associou ao grupo de lojas de eletrônicos Darty, e soma agora mais de 400 lojas pelo mundo, mas sobretudo na França. Em condições normais, segundo os jornais franceses, essa fusão não ocorreria. Mas o órgão responsável pela regulamentação de oligopólios e monopólios na França adotou uma nova interpretação do mercado e avaliou a presença da Fnac e da Darty não apenas como lojas físicas, mas também virtuais: a leitura, então, identificou duas grandes concorrentes, justamente a Amazon e a rede CDiscount. Nitidamente, os órgãos antimonopólio na França identificaram que, pior, para a concorrência, tanto no mercado editorial e para o mercado de eletrônicos do país, do que a fusão das duas redes, seria uma crise que favorecesse o domínio das vendas pela internet.

Com a fusão com a Darty, a Fnac ficou ainda mais, em essência, uma loja de tecnologia. Os livros, mesmo na França, são apenas uma parte do negócio. Mas antes mesmo a Fnac já migrara, talvez pressionada pela lei do preço único, para um modelo misto. Para garantir os lucros que seus acionistas exigiam, a Fnac francesa precisou diversificar.

E hoje, ainda que ela negue, a lei do preço único do livro a protege relativamente da entrada violenta da Amazon, que respeita, a contragosto, a legislação francesa, mas passou a praticar a política do frete grátis para disputar em vantagem com as livrarias físicas e virtuais francesas.

Nos Estados Unidos, a grande rede de livrarias físicas que se formou destruindo os independentes foi a Barnes and Noble. Depois de inviabilizar, com suas práticas monopolistas, milhares de pequenos negócios, a enorme rede não se ampliou como previsto, e muitas cidades norte-americanas ficaram sem lugar para comprar livros enquanto um caminho oposto ocorria na França.

Como podemos perceber a partir de toda essa movimentação, o negócio do livro é bastante especial. Nenhum outro setor da economia trabalha com uma diversidade tão grande de fornecedores e clientes. A rigor, todo mundo que sabe ler é um potencial leitor de livros, físicos e virtuais. E todo texto escrito tem potencial para virar livro.

Sempre que me perguntam qual é a saída para a crise do setor, só uma resposta me vem: pensar. Pensar o livro, a leitura e a circulação como um sistema que é cultural e que é também econômico, que tem particularidades históricas e conjunturais. E, principalmente, que tem de funcionar bem para que as ideias fluam, os debates ocorram, as diferenças se encontrem. Sem livros, não haveria nem mesmo economistas, sejam eles liberais ou desenvolvimentistas.