Joan Edesson: Eduardo Guimarães e o pescoço de Castelo

 Em 1965, no aniversário da proclamação da República, Airton Gomes de Araújo, de Brejo Santo, no cariri cearense, foi acusado de dizer que o pescoço do Marechal Castelo Branco parecia com o de uma tartaruga. Um dedo-duro fez a denúncia e Airton passou um mês preso no quartel do 23º Batalhão de Caçadores, em Fortaleza.

Eduardo Guimarães

Airton respondeu ainda a processo na Auditoria da 10ª Região Militar e foi enquadrado no Artigo 22 da Lei de Segurança Nacional, que previa detenção de um a dois anos a quem “praticasse ato público que exprima menosprezo, vilipêndio ou ultraje ao nome do Brasil ou de qualquer dos símbolos nacionais, de Estados ou Municípios”.

De nada adiantou o desagravo de Airton, dizendo que não era o pescoço do marechal que parecia com o da tartaruga e sim o contrário, o pescoço da tartaruga é que parecia com o do marechal. Naquele momento, o pescoço de Castelo foi elevado à condição de símbolo nacional, a salvo portanto de quaisquer ofensas ou mesmo de meras comparações. E olha que circulavam e circulam, ainda hoje, piadas muito mais infames com o tal pescoço presidencial.

O episódio, embora pareça pertencer ao anedotário nacional, é a mais pura verdade. O genial Stanislaw Ponte Preta registrou-o no seu FEBEAPÁ – Festival de Besteiras que Assola o País. O jornal “Última Hora”, do Rio, trouxe a notícia na página 3 do seu Caderno 1, na edição de 1º de junho de 1966. Está lá, para os que queiram comprovar.

Aqueles eram tempos duros, muito difíceis. O talento incomparável de Sérgio Porto registrou as inúmeras besteiras cometidas pelo arbítrio. Hoje, à distância, a gente dá risada delas. Mas Airton Gomes de Araújo, preso e processado, não teve na época nenhum motivo para risos.

Talvez a geração que nos suceda, se algum escriba de talento registrar as idiotices e besteiras que os desmandos atuais perpetram diariamente, da fala do presidente ilegítimo sobre as mulheres aos fantasmas que lhe assombram, passando pelas mesóclises, declarações de amor à língua e outras mais; talvez a geração que nos suceda, ao ler o que presenciamos nos dias de hoje, dê risadas de tanta besteira cometida pelo arbítrio.

Mas Eduardo Guimarães, conduzido coercitivamente (o termo já teria lugar garantido no FEBEAPÁ) na última terça-feira, não tem motivos para rir. O que lhe acometeu está no campo da tragédia, ou talvez da tragicomédia. Eduardo foi vítima do mais puro arbítrio. A trapalhada que lhe conduziu para depor, violados seus direitos fundamentais, é expressão desse arbítrio. Os limites da democracia foram cruzados há muito. Se uma presidenta (gostem ou não os que dizem amar a língua sem conhecê-la bem) foi afastada através de uma ópera-bufa, é bom que saibamos que nenhum de nós está a salvo.

O crime de Eduardo Guimarães? O mesmo cometido por Airton Gomes de Araújo, no distante ano de 1965. Eduardo Guimarães fez críticas ao pescoço de Castelo, ele teve a ousadia de criticar um símbolo nacional, aquele acima da democracia e da justiça. Eduardo Guimarães está pagando pela sua ousadia.

Nós todos também, se tivermos a mesma ousadia, pagaremos um preço alto. Ou nos mobilizamos todos para restabelecer a democracia no Brasil, ou doravante evitemos até pronunciar ou escrever o nome dos novos símbolos nacionais. Eu, escaldado, fujo de água fria. Tanto que neste texto não escrevi, uma única vez, o nome daquele que não deve ser nominado.