Erik Satie, um artista em forma de pera

“Embora sejam falsas as nossas informações, nada podemos garantir”. Esta não é uma frase da Alice de Lewis Carroll, como poderíamos ter concluído, mas de Satie.

Por Rogério Cerqueira Leite

Erik Satie - Divulgação

Esse gosto pelo insólito, pelo aparentemente ilógico, certamente não é comum entre os músicos. Talvez seja possível encontrar uma explicação na primeira grande afeição do jovem Erik Satie por seu tio Adriano, aquele que se dedicava à concepção de navios absolutamente inúteis ou de carros tão lindos que ninguém ousava guiar. Foi talvez desse tio excêntrico que teria herdado a fantasia enigmática e a imaginação arbitrária e irreverente. É preciso também não esquecer seu apego a Hans Christian Andersen o que explicaria a intransigência intelectual. Se o rei está nu como não vê-lo como tal?

Mas não houve espírito mais ambivalente. O espírito crítico e mordaz convivendo com o misticismo de um seguidor da ingênua irmandade Rosa-Cruz, e a inflexibilidade de uma estética moralista em harmonia com a sua Música de Mobiliário. Mas não resta dúvida de que há uma lógica irresistível na música e na vida desse desconcertante personagem. Nada há de mais injusto do que a suposição tão corrente de que os inesperados títulos das obras de Satie tivessem a intenção de provocar o próximo ou de mobilizar curiosidades ilegítimas. Títulos tais como Gymnopédies ou Três Peças em Forma de Pera são em tudo coerentes com a música e a percepção da realidade que esse fascinante personagem revelou de si mesmo. Todavia, apenas a convivência com a música de Satie será capaz de convencer quem quer que seja de sua autenticidade.


Foto: Harry D.
 

Proponho ao leitor que ainda não penetrou nesse mundo da mais pura e honesta fantasia que o faça pela porta da frente, ou seja, pela música para piano. Em primeiro lugar porque esse segmento de sua obra se estende por toda sua vida e deixa transparecer sua evolução conceitual desde os tempos místicos da busca de uma simplicidade medieval pelo estudo do Canto Gregoriano e adoção dos parceiros da Rosa-Cruz até o esforço físico e intelectual para refletir a revolução Cubista de seu amigo Picasso. É preciso não esquecer que sua trajetória passa pelo Impressionismo do jovem Debussy a quem dedicou uma profunda amizade e ainda pelos reboliços do Fauvismo. Haverá coisa mais deliciosa do que essas tão famosas Peças em Forma de Pera, ou então a sua expressiva Sonatina Burocrática?

As obras completas para o piano de Satie cabem em cinco ou seis discos e abundam boas interpretações de antologias em um único disco. A versão de Barbier do ciclo integral é um infinito reservatório de poesia, apresentada com a simplicidade que melhor convém a Satie. Ciccolini, mais frio e calculado, convence pelo vigor e pelo tom incisivo. No Brasil, a obra completa foi lançada com Cordélia Canabrava Arruda. Conheço apenas o sexto volume que não contém as peças mais conhecidas. É, pois, com relativa insegurança que recomendo essa integral, embora eu tenha gostado do estilo descontraído e direto da pianista brasileira. Outros intérpretes recomendáveis de Satie ao piano são Clidat, Février, Crochet (lançado no Brasil), Entremont, Barbier e Varsano. E é óbvio para aqueles verdadeiros aficionados, as gravações de Poulenc de peças tais como, Vestido de Cavalo, A Bela Excêntrica, Esboço e Provocações de um Gordo Bonachão de Madeira etc.

Além dessa persuasiva e inovadora obra para piano, Satie escreveu um breve punhado de Canções (melodias) de grande beleza formal e poesia. Não creio que haja gravação da obra completa embora coubesse, certamente, em apenas dois discos. Intérpretes convincentes são a eterna Crespin, a sedutora Normann, o clássico Cuénod, e a profissionalíssima Mesplé. A obra sinfônica e de cena de Satie é igualmente escassa. Seu grande esforço dramático em Socrate foi relativamente bem-sucedido. Não é Pelléas por certo; Satie não tem aquele maravilhoso senso de proporções e de forma que foi a marca de Debussy. Mas Socrate é certamente plena de momentos comoventes e de extrema pureza. A versão com Leibowitz, hoje suprimida dos catálogos é a minha preferida, embora a presença de Cuénod na versão para voz e piano seja excelente. Há também a versão histórica com Sauguet bastante atraente. Para as demais obras para orquestra, aquelas ditas de mobiliário no linguajar peculiar do compositor, eu recomendo Rosenthal, Auriacombe, Markevitch e Dervaux.