Lu Castro: Seleção feminina – dos talentos negros ao embranquecimento

O movimento mundial #8M segue além de sua data e adentra um recorte necessário quando falamos do futebol das mulheres. Temos a questão do gênero para debater e o fazemos diariamente, mas aprofundar a questão da raça dentro das quatro linhas se faz urgente.

Por Lu Castro*

Seleção feminina anos 90 - Foto: Margarete Maria Pioresan (arquivo pessoal)

Um dia me peguei comparando as primeiras formações da seleção brasileira com as mais recentes e percebi que, aos poucos, as selecionáveis tinham um perfil racial diferente das anteriores. A observação foi feita com base na quantidade de negras e brancas.

Coincidência ou não, e mesmo que aos poucos, o discurso de que as jogadoras “deveriam” ser mais bonitas para atrair o público masculino, parece estar ganhando força. Não pela qualidade das atletas, não é o que exponho aqui, mas sim como um elemento determinante para ser interessante a um público que se pretende atingir e que sempre refutou as mulheres futebolistas.

Mas há que, necessariamente, “embranquecer” o selecionado brasileiro para que o futebol jogado seja interessante?

A pergunta é retórica, claro, haja vista os nomes do passado que habitam até hoje a memória popular quando se fala em futebol feminino nos anos 1980 e 1990: Michael Jackson, Pretinha, Roseli, Kátia Cilene, Solange, Tânia Maranhão, Fanta, Formiga, Miriam, entre outras cuja pesquisa de imagem não alcança enquanto suplentes.

A partir dos anos 2000 até recentemente, tivemos a presença de Maycon, Ester, Graziele, Renata Costa, Elaine, Aline Pellegrino, Formiga (sendo ela mantida em razão de sua excelência), Bárbara, Giovana, Luciana, Chú, Tayla, entre outras. Fiz o mesmo tipo de apontamento em texto para o Vermelho em setembro passado, mas tomando as seleções olímpicas como base.

Observar, apontar e estudar as questões que envolvem esta maneira de padronizar o esporte praticado por mulheres, é de inestimável importância, vista que diariamente somos pressionadas a atingir um padrão de perfeição estética, como se isso fosse possível e sem considerar os mais variados biotipos brasileiros.

Em tempos em que o homem que ocupa o mais alto cargo executivo do país, discursa de modo machista e limitado a respeito das habilidades e campos de atuações femininas, em que renomada universidade paulista convida parlamentar que responde a processo penal por incitação ao estupro (Bolsonaro se dirigiu à parlamentar Maria do Rosário com as seguintes palavras: “Só não te estupro porque você não merece”), para palestrar sobre feminismo no Dia Internacional da Mulher, urge desconstruir o discurso machista que avança tão rapidamente quanto às práticas violentas e de supressão dos nossos direitos.

Tudo começa a se desenhar quando ouvimos o argumento falacioso de que é preciso levar mais beleza ao campo de futebol e que só assim será possível atrair a atenção das pessoas. De modo muito sutil, esse argumento é reforçado em matérias notavelmente apelativas para o tema, como “jogadoras de futebol também são vaidosas” ou “jogadoras contam seus segredos de beleza”.

Outro fato que pode ser apontado é a quantidade de meninas que estão jogando futebol. Em termos comparativos, há 30 anos, a procura era muito inferior à de hoje e a prática era mais comum nas regiões periféricas. As histórias de vida das atletas veteranas apontam para isso. Hoje contamos com mais espaços centralizados para a prática, tanto voltados para o treinamento quanto para o lúdico.

Ou seja, o futebol se popularizou entre as mulheres de todas as camadas sociais, que muitas vezes passaram de torcedoras a praticantes. Essa mudança também atingiu significativamente as famílias, que passaram a levar suas filhas às peneiras e a prestigiar a modalidade. Um pouco do estigma da modalidade caiu, ainda que tenhamos relatos tristes de machismo absoluto.

Aproveito para compartilhar uma pesquisa feita pelos repórteres Brunno Carvalho e Felipe Pereira, do UOL, que revelam dados já conhecidos por quem pratica e por quem transita nos bastidores da modalidade, mas que soa como surpresa desagradável para muitos.

Faço um adendo: Foram consultadas 62 atletas de 16 clubes que disputarão a Série A do Brasileiro de 2017. Numa conta simples, isso corresponde a apenas dois elencos entre os 16 times da série A e um elenco para cada uma das duas séries.

Em linhas gerais, seguimos com o silêncio das protagonistas e há uma parte disso que se pode compreender. Garantir seu sustento através do futebol é para poucas, fato bem apontado na pesquisa do Uol. Aproveitar os anos de produtividade como atleta para se manter na ativa, é outro fator que fatalmente pesa na manutenção da postura. São muitos os casos de retaliação às atletas que não aceitam caladas as imposições e abusos.

Um respiro

Na noite desta quinta-feira, 9, o Sesc Pinheiros abrigou um bate-papo com a técnica da seleção principal, Emily Lima, que, dentre tantas coisas boas, deixou claro que será preciso jogar futebol para estar na seleção. Em outras palavras, sob seu comando não existirá lugar cativo e que toda convocação passará pelo crivo da condição de jogo no seu mais alto rendimento.

Também nos relatou a criação do banco de dados das atletas avaliadas, que garante substituições mais criteriosas no que diz respeito às condições das suplentes. Falou também do papel da CBF Social, que tem rodado por algumas cidades do país realizando seletivas onde o alcance é precário e as chances das meninas, diminutas em relação aos grandes centros.

Ações possíveis

Por fim, penso ser necessário apontar para as equipes de várzea e o papel que desempenham junto às comunidades periféricas e, consequentemente, com maior população negra, no fomento do futebol das meninas e mulheres.

Os times de várzea são agentes locais importantes e com grande participação das mulheres, quer seja entre as apoiadoras como também diretoras. Quebrar o ciclo de intervenção masculina nos campos das quebradas é papel que cabe a todos os envolvidos com as atividades locais.

Talvez a partir daí, veremos novamente mais negras compondo o selecionado brasileiro e nos regozijando com mais jogadas como as de Pretinha e Roseli, gols como os que Katia Cilene e Michael Jackson cansaram de fazer, disposição e raça como tem Formiga. E, para além disso tudo, deixar a seleção brasileira mais com a nossa cara: um país gigante feito de várias raças, cores, credos e gêneros. E isso deve passar também pelo futebol das mulheres.