Ni Una Menos: “Tecemos uma rede feminista que vai abalar a terra”

Do Sul do mundo ecoou um grito: “Ni Una Menos!”. Em poucas semanas, o movimento subiu pela América Latina, chegou à Europa e aos Estados Unidos. Com os punhos cerrados, as mulheres argentinas mostraram que não há fronteiras na luta para combater a violência de gênero e, de 2015 pra cá, fortaleceram e expandiram a articulação global. “Tecemos uma rede mundial de feminismo que neste 8 de Março vai abalar a terra”, diz uma das organizadoras do coletivo, Cecília Palmeiro.

Por Mariana Serafini

Ni Una Menos - Divulgação

Em conversa exclusiva com o Vermelho, Cecília conta como este grupo de mulheres comunicadoras uniu forças para dizer “basta” à violência de gênero. Ela é doutora em Literatura Latino-americana pela Universidade de Princeton (EUA), professora de estudos culturais latino-americanos especializada em gênero e sexualidade na Universidade de Nova York em Buenos Aires e na Universidade Nacional de Três de Febrero e autora da obra Desbunde e Felicidade, que em breve será publicada no Brasil. “O coletivo Ni Una Menos de Buenos Aires é um grupo independente e autogestionado de mulheres profissionais da comunicação. Somos escritoras, poetas, editoras, jornalistas, artistas e acadêmicas que decidimos colocar nossos saberes e práticas à disposição para eliminar a violência contra as mulheres”, explica.

Os números relacionados à violência contra a mulher no Brasil são estarrecedores. Uma mulher é estuprada a cada 11 minutos, agredida a cada 5 minutos e assassinada a cada duas horas. Dos casos de estupro registrados, 89% das vítimas são mulheres, destas, 70% crianças e adolescentes que normalmente têm uma relação afetiva com o agressor, ou seja, estes são pais, padrastos, tios, avós, amigos da família, ou têm uma proximidade. Não é à toa que o movimento contra a violência tem ganhado cada dia mais adeptas.

De acordo com Cecília, na Argentina a violência aumentou no último ano. Em 2015 e 2016 uma mulher era assassinada a cada 30 horas, apenas neste início de 2017 o registro de feminicídio quase dobrou e uma mulher é assassinada a cada 18 horas. Ela denuncia também que aumentou a crueldade dos casos e a espetacularização da violência nos meios de comunicação. “Isso é parte do que chamamos de reação conservadora, através da qual o patriarcado defende seus privilégios, mas também da restauração conservadora que ataca nosso continente através de governos neoliberais que destruíram os avanços obtidos em matéria de direitos e liberdades conquistados durante os governos progressistas”.


Manifestação de mulheres na Argentina pede justiça para Lucía Perez, jovem de 16 anos estuprada e empalada pelos seus algozes em dezembro de 2016

Com o mote em defesa da vida das mulheres, o coletivo conseguiu ampliar o discurso e propor o debate sobre outras formas de violência “menos óbvias”, explica Cecília, como os casos de abuso no ambiente de trabalho e as questões econômica e cultural. A conquista, neste sentido, é a transformação na opinião pública e a percepção das mulheres sobre a própria condição, sobre os direitos trabalhistas e as formas de opressão. “Ativamos o nervo revolucionário das mulheres em nosso continente e liberamos nossa imaginação para criar novas formas de comunidade. Infelizmente padecemos atualmente com um governo tremendamente misógino, racista e classista e, apesar de seus gestos vazios, é o principal responsável pela guerra contra as mulheres em nosso país.”

Assim como Michel Temer no Brasil, o presidente da Argentina, Mauricio Macri, também propõe uma agenda neoliberal. Ao isentar o Estado de suas responsabilidades e ampliar o poder do mercado, as mulheres, os trabalhadores, os estudantes, os idosos, as crianças e grupos vulneráveis são imediatamente atingidos. É o caso da reforma da Previdência, no Brasil, por exemplo, que vai prejudicar especialmente as mulheres.

Por isso no 8 de Março levanta-se a bandeira contra a violência, mas também em defesa de direitos. Diante desta onda de retrocessos que assola o Brasil, a América Latina e diversos outros países, partiu dos Estados Unidos uma palavra de ordem para mobilizar mulheres de todo o globo a fim de barrar esta agenda neoliberal. O manifesto assinado por Angela Davis e outras intelectuais norte-americanas é enfático: “Precisamos alvejar o ataque neoliberal em curso sobre os direitos sociais e trabalhistas”.

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Da Argentina, Cecília endossa a campanha: “O 8 de Março voltará a ser o dia internacional da mulher trabalhadora, por isso decidimos fazer a greve nesta data histórica que recorda as trabalhadoras assassinadas por protestar nos Estados Unidos. Não queremos flores, queremos igualdade econômica e autonomia sobre nossos corpos. Nosso desafio agora é seguir articulando um movimento unido e interseccional, capaz de abrigar mulheres e corpos indígenas, afrodescendentes, migrantes, trabalhadoras, travestis e trans, presas e escravizadas de todas as religiões, culturas e classes sociais. Temos que poder seguir articulando um discurso radical que não seja cooptado pelas agendas neoliberais”.

Neste sentido, o movimento Ni Una Menos é “enorme, popular e massivo. Somos o feminismo anticapitalista, antipatriarcal, anticolonial e antirracista. Impomos na agenda política as questões de gênero e conseguimos que no mundo inteiro a violência contra as mulheres seja percebida como tal, e não como parte natural da paisagem social. Mesmo que os governos não tenham cumprido com nossas demandas, sentem a pressão do eleitorado feminino que já não está disposto a tolerar o machismo e a supremacia masculina”.

Articulação global de mulheres

O Ni Una Menos não é ligado a algum partido político, mas é formado por mulheres que trazem consigo a luta política e se articulam em redes de assembleias em todo o território argentino. No ano passado, elas ampliaram a rede de articulação com outras ativistas do continente e do mundo e todas as ações são realizadas de forma colaborativa e solidária com movimentos feministas que já existiam, através de assembleias e convocatórias abertas, explica Cecília.

Neste 8 de Março, obviamente, elas estarão nas ruas e a próxima grande ação regional acontecerá no dia 3 de junho, que em 2015 foi estabelecido como o dia de luta contra o feminicídio.

No vídeo Cecília explica como foi a 1ª greve nacional de mulheres na Argentina: