Dilma Rousseff: A luta das mulheres

Importantes pensadores contemporâneos, como Manuel Castells, afirmaram que a ação contestatória das mulheres quanto à ordem no mundo – o processo de elaboração do conhecimento, a hierarquia de saberes, a organização econômica, o valor do trabalho e a falsa dicotomia entre público e privado – constitui o aspecto marcante das últimas décadas, com reflexos no atual milênio.

Por Dilma Rousseff*, na CartaCapital

Dilma Rousseff no Recife

Castells compara essa ação contestatória à revolução provocada pela descoberta de certos fármacos que mudaram a história das doenças, ou à própria informática e o mundo digital.

A complexidade deste fenômeno, segundo a socióloga peruana Virginia Vargas Valente, pode ser resumida tanto pelo que classifica como a “tensa, conflitiva e inevitável relação entre sociedade civil e Estado”, quanto pela ação dos movimentos sociais no processo de construção da cidadania feminina na América Latina. Uma região do mundo, como sabemos, entre as mais desiguais na distribuição de renda e onde as demandas por direitos marcaram intensamente as lutas democráticas. Paradoxalmente também, foi aqui que o modelo neoliberal sofreu resistências na sua implantação, a partir da eleição de vários governos de esquerda, como os nossos, que atuaram pra reduzir desigualdades, garantir direitos, afirmar a soberania nacional e o primado de relações internacionais multilaterais.

No Brasil, a luta de resistência democrática e a ruptura com o regime ditatorial trouxe demandas por igualdade de direitos e oportunidades, tendo a presença feminina sido protagonista e atuante nos momentos cruciais. Também ali, as mulheres aprenderam as lições da cidadania.

No processo da Assembleia Constituinte de 1988, criaram formas de organização e uma agenda direcionada à sociedade e ao poder. E passaram a se perguntar também que Estado, que igualdade almejavam? Após séculos de tradições patriarcais, da demora no direito de voto, do acesso dificultado à educação, dos resquícios do escravismo nas relações raciais e da violência como principal forma de controle, o desejo de mudança represado se expressou claramente com as mulheres participando e colocando suas demandas:

Anistia! Diretas!

Sem as mulheres, os direitos não são humanos!

Alguns desses muitos gritos de inclusão na cidadania e na democracia nasceram da participação das mulheres.

Em minha trajetória política, que me levou a dois mandatos na Presidência da República, cargo do qual fui afastada por um golpe parlamentar, sem crime de responsabilidade, sempre acreditei que as mulheres são fortes. O que tenta impedir a expressão de sua fortaleza são sistemas de poder de raízes patriarcais, racistas e elitistas de nossa história que se revelam, concretamente, na vida social.

O nosso passado escravista continua a desvalorizar o trabalho feminino, resultando na persistência da falsa dicotomia entre um mundo público e outro privado, distanciando-nos do poder político.

Minha eleição, assim como aquelas de Michelle Bachelet e Cristina Kirchner, em países vizinhos, passaram uma nova mensagem: a de que as mulheres podem chegar à condução dos destinos dos países, embora nossos desempenhos sejam avaliados tendo por base preconceitos, discriminações, misoginia.

Escutamos, por outro lado, a mensagem das mulheres, em nosso apoio, e o alerta de que “o ataque pessoal é um ataque político”. Há um campo simbólico minado pelas concepções machistas e o Estado é permeado por elas.

Hoje, mais do que nunca, as brasileiras têm muito a perder quando se inicia o desmonte de todas as políticas sociais que retiraram milhões da miséria e da pobreza. Quando se ameaçam todos e todas com a redução de direitos trabalhistas e previdenciários.

Após 2003, erigiu-se em nosso país, com a crescente participação feminina, a mais ampla política para equidade de gênero, com interseções de raça e etnia, reconhecendo a diversidade entre as mulheres.

Em meus governos e do presidente Lula expressamos a compreensão sobre o caráter estrutural das desigualdades e a necessidade de abordá-las em profundidade. O aumento da violência e do feminicídio, assassinato de mulheres por serem mulheres, foram encarados como um grave problema de toda a sociedade e algo com o qual não se pode conviver.

As leis Maria da Penha e do Feminicídio botaram o dedo nesta ferida. No Brasil, registram-se quinze feminicídios ao dia, e mais de 130 mil estupros ao ano. Foi necessário responder à altura com novas leis para tipificação da violência doméstica como crime, do feminicídio como crime hediondo, da obrigatoriedade de atender vítimas de estupros.

Os programas que erigimos nos permitiram dimensionar o problema e relacioná-los com outros fatores estruturais. Pois, na medida em que diminuem os crimes contra mulheres brancas, aumentam entre as mulheres negras. Esse imenso e secular peso da discriminação racial no acesso aos bens e serviços e à cidadania.

A Conferência sobre a Mulher, Desenvolvimento e Paz, realizada na China, em 1995, reafirmada em todas as outras instâncias das Nações Unidas, alertou sobre a impossibilidade de transformar o mundo sem o protagonismo das mulheres na construção e no usufruto das riquezas. Tornou-se célebre a frase “a pobreza no mundo tem a cara de mulher”, em Beijing.

Gênero, raça, classe, como tem dito a norte-americana Angela Davis ao convocar as grandes marchas contra o projeto de Donald Trump e aliados, constituem um só divisor no acesso ao que amplamente se pode chamar de poder – poder de falar, de comer, de trabalhar, de decidir, de viver a vida com liberdade e autonomia.

O Brasil deu um salto, ao longo dos últimos anos, com respostas em várias dimensões. Além do programa Mulher Viver sem Violência, que estabeleceu a implantação das Casas da Mulher Brasileira e uma ampla rede de atendimento, assumiu a necessidade de focar nas mulheres as políticas distributivas de renda, a criação de oportunidades e a melhora da qualidade de vida.

Em abril de 2016, quando os golpistas me tiraram do governo, podíamos comemorar que 36 milhões de brasileiras e brasileiros transpuseram a linha da extrema pobreza no tocante à renda, que 54% eram mulheres, 78% negros. No Bolsa Família, as mulheres representavam 97% da titularidade, num universo de 14 milhões de famílias, ou seja, 56 milhões, ou um quarto da população do País. No Minha Casa Minha Vida, as mulheres possuíam a garantia de titularidade da propriedade da casa.

Esse empoderamento, entretanto, ainda não foi capaz de quebrar a carga de preconceito e exclusão que mantém as mulheres de todo o mundo como minoria nos espaços de poder e decisão.

Fortalecer, empoderar e dar dignidade se tornou o objetivo fundamental do trabalho para trazer as mulheres à cidadania. A política de autonomia econômica das trabalhadoras urbanas e rurais pode ser simbolizada pela PEC das Trabalhadoras Domésticas, segmento que ainda vive sob o signo da desigualdade.

O Pronatec atraiu mais 5,5 milhões de mulheres para formação profissional, cerca de 59% dos inscritos. No campo, a documentação civil deixou de ser privilégio masculino. O Plano Safra entre 2014 e 2015 foi firmado por 557 mil mulheres. Cerca de 90% das casas de beneficiados da faixa de menor renda do MCMV também estão em nome delas, assim como 94% das cisternas instaladas pelo meu governo no semiárido nordestino. O incentivo às jovens no programa Ciência Sem Fronteira resulta numa geração de novas potenciais cientistas.

Essa tendência se manteve enquanto a crise internacional não bateu às nossas portas e agora, segundo o Banco Mundial, ameaça com retrocesso e empobrecimento, graças ao efeito devastador da crise política criada pelos golpistas sobre o projeto soberano e por mais igualdade que desenvolvemos.

Neste momento em que trabalhamos para evidenciar o golpe parlamentar ocorrido no Brasil, estão nítidos os contornos do projeto que eu defendo e o que eles operam. Há um fosso profundo que só a democracia será capaz de solucionar, pois como eu tenho dito sempre às mulheres, a democracia é nosso lado da história, o lado certo.

E vamos lutar por isso.