“O feminismo avançou, mas não consolidou os avanços”, diz socióloga

Para explicar a importância da igualdade entre gêneros para os homens, a socióloga Eva Blay diz que sempre conta uma historinha. “Eu fazia a conta. Você [homem] ganha R$ 20. A tua mulher ganha R$ 10. Quanto entrou na sua casa? R$ 30. Então ficou faltando quanto? Quem ficou com esses R$ 10 [que estão faltando]? Quando você joga essa pergunta: ‘quem ficou com os R$ 10?’ – e não foi nem você, nem sua mulher nem sua casa – era fantástico”, disse, em entrevista à Agência Brasil.

Eva Blay

Socióloga e professora titular da Universidade de São Paulo (USP), Eva Blay, 79 anos, foi senadora e atualmente coordena o Escritório USP Mulheres, que atua no enfrentamento da violência contra a mulher, para a garantia da igualdade de gênero no Brasil e conta com apoio da Organização das Nações Unidas (ONU).

Para ela, o feminismo avançou muito ao longo dos anos, mas a consolidação dos direitos das mulheres no mundo nunca foi, de fato, consagrada. “Na sociedade não existe, nunca [houve] uma consolidação. O que existe é sempre um processo”, destacou.

Sobre o conceito de igualdade entre homens e mulheres, a socióloga explica: “Homens e mulheres são iguais perante a lei. E ser igual significa o que? As mesmas oportunidades de estudar, de não ter limitações nas carreiras, de não ter um teto de vidro que limita a ascensão das mulheres nas carreiras. Enfim, uma mudança geral na estrutura da sociedade. E estou falando especialmente da brasileira. Mas isso acontece em todas as outras sociedades”.

Eva reforça que desde os anos 1950, a reivindicação por igualdade era a principal bandeira do movimento feminista no mundo todo. “Não era só socialista, era feminista, era suprapartidária. E o movimento feminista incluiu todas essas reivindicações: a igualdade de direitos, a igualdade sobre, por exemplo, na família, de a mulher poder dizer quem é seu filho e quem é o pai do seu filho. Nós não podíamos fazer isso. A mulher, para trabalhar, precisava de autorização do marido. Para viajar, precisava de autorização. Ela não podia nem usar o próprio dinheiro”, lembra a socióloga, apontando com essa luta garantiu avanços.

“Avançamos do ponto de vista do direito, do ponto de vista da educação, as mulheres se tornaram altamente escolarizadas comparando com os homens e muitas foram para a universidade. O caminho da universidade é mais ou menos heterogêneo. Nas carreiras que são das ciências chamadas duras ou exatas, temos menos mulheres que homens. Mas estamos fazendo muita força para ampliar isso”, destaca.

Ao falar sobre os desafios atuais do movimento de mulheres, Eva considera que o combate à violência é um dos principais. “Na violência, nós não conseguimos avançar. Ela continua. Na pior situação, há o assassinato de mulheres, a violência dentro de casa, o estupro, o incesto. Tudo isso continua acontecendo e esta é a área que a gente menos conseguiu avançar. Não só no Brasil como na América Latina toda e no mundo, de forma geral. Mas aqui a distorção é muito pior”, alerta ela, lembrando ainda que o Brasil está em quinto lugar no assassinato de mulheres no mundo.

Eva ressalta que a lei é importante para punir, mas é preciso promover uma mudança cultural. ”Acho que estamos avançando. Por exemplo, na violência, a gente não superou os limites. Mas a gente tem a Lei Maria da Penha e a Lei do Feminicídio. Mas agora é uma questão de cultura. Você tem a lei, mas não tem ainda a cultura para implantar isso”, disse.

E segue: “Nós vivemos em uma cultura patriarcal, uma cultura machista. Então, enquanto você viver em uma cultura machista, você não consegue acabar com isso. Vou dar um exemplo. Tem um fulano, que não quero citar, que matou a mulher e era uma pessoa notória porque ganha dinheiro. Dois dias depois, o que vejo nos jornais? A seguinte frase: ‘fulano de tal [ela não diz o nome, mas ela está falando do goleiro Bruno, condenado por assassinato] está muito magoado com seus companheiros que não foram visitá-lo na prisão’. Eu acho que os companheiros não foram visitá-lo na prisão porque não estavam de acordo por ele ser um assassino. Mas a mídia não está passando isso. A mídia está passando ‘coitado, ele pagou o seu crime, então agora ele tem que ser recepcionado’. Você colocar na mídia essa tentativa de dizer vamos recuperá-lo? A moça sumiu. Nunca se achou o corpo dela”, rechaça.

Sobre a atual conjuntura política, Eva afirma que o mundo vive uma era conservadora que se incomoda com os avanços conquistados pelas mulheres.

“Tem um aí que acha que a mulher tem que ser subserviente ao homem. Ou ele acha que o casamento entre homossexuais é uma aberração. Não concorda com o aborto mesmo em caso de anencéfalos. Até em coisas que já avançamos existem aqueles que querem voltar atrás. Por isso, acho muito importante a gente nunca perder de vista que o feminismo avançou, mas não consagrou os avanços. Você tem que estar sempre alerta porque senão volta para trás. Vide o Trump que, nos Estados Unidos, quem imaginaria que ia fazer as propostas tão retrógradas como ele está fazendo?”, indaga.

E completa: “Acho que hoje em dia ninguém ousa pensar o Dia Internacional da Mulher como o dia do bombom. Eu não vejo mais isso não. Se você andar pela rua ou mesmo aqui pelo campus [da USP], o que você vê? Frases e cartazes assim [ela mostra postais com frases que pedem o fim do assédio e da violência contra a mulher], de que isso tem que parar. A violência sexual tem que parar. Elas podem ser chefes no trabalho, elas podem andar como quiserem. Você deve apoiá-las. Isso nós estamos fazendo. Agora, elas podem sair à noite sozinhas. Hoje você pega uma adolescente e ela não aceita mais vir com essa conversa. Ela quer andar de shorts sim, decotada sim e ninguém tem nada a ver com isso. Elas já absorveram esse feminismo”.