Com Trump, Oscar precisa ver cinema como ato político

Na era de Donald Trump, é ingênuo esperar que artistas se mantenham neutros e deixem de se posicionar sobre assuntos que mobilizam a comunidade internacional. O mesmo vale para a maior cerimônia da indústria do cinema norte-americano, que acontece no domingo, 26, e se vê profundamente associada à política norte-americana.

Clarice Cardoso, da coluna Tela a Tela (Carta Capital)

Oscar 2017 - Fotomontagem da revista Carta Capital

Quer escolha manter o padrão de ativismo artístico vista na temporada de prêmios, quer prefira uma edição mais escapista, Trump será o convidado indesejado da realeza hollywoodiana. Ao mesmo tempo, justamente por se tratar de um momento de profundas incertezas políticas, a entrega de estatuetas douradas a lindos milionários em uma cerimônia televisiva que a cada ano luta para tornar-se menos maçante soa de fato um assunto menor.

Seria o caso, não fosse o cinema essa forma de manifestação artística capaz de refletir e produzir importantes reflexões acerca do mundo e de nossas sociedades. Não há dúvidas de que Moonlight – Sob a Luz do Luar, Um Limite Entre Nós, A Qualquer Custo e mesmo Manchester à Beira-Mar, para citar apenas os postulantes ao prêmio principal, se enquadram nesse papel de produções que denunciam, provocam, tocam e emocionam.

Para além da validação oferecida pela Academia, muitos filmes na competição são detentores de qualidades ímpares que lhes podem garantir presença perene na história do cinema num futuro próximo. Caso dos protagonistas de Um Limite entre Nós, Denzel Washington e Viola Davis, e do coadjuvante de Moonlight – Sob a Luz do Luar, Mahershala Ali, intérpretes que se mostram entre os mais relevantes e talentosos do momento atual.

Se Trump representa a arrogância do homem branco que nega o negro, o latino, o muçulmano, a mulher, tudo o que dele se difere, é justamente a diversidade, elemento essencial do cinema como arte, o que pode salvar Hollywood do mero colunismo social. Sob a pressão dos anos recentes que se cristalizou na campanha #OscarsSoWhite, a Academia convocou novos membros no ano passado, em sua maioria mulheres e negros, numa atitude que beirou a gestão de crise, mas trouxe resultados rápidos.

Favorito do TelaTela na corrida deste ano, Moonlight, de Barry Jenkins, tem oito indicações. Além disso, todas as categorias de atuação têm ao menos um candidato não branco e, em três delas, eles são os favoritos. Entre os postulantes a melhor direção, contudo, ainda não se vê mulher alguma.

O uso das cerimônias de entrega de prêmios como palanques para protestos políticos não é história nova. Todos se lembram de Marlon Brando recusando o prêmio de atuação em 1973 por O Poderoso Chefão e enviando em seu lugar uma ativista para protestar contra o tratamento dos nativos americanos na indústria cinematográfica.

Trump, como não poderia deixar de ser, tem sido tema recorrente nas entregas de prêmios de 2017. Quase uma primeira-dama do Oscar com suas 20 indicações, Meryl Streep fez um dos mais contundentes discursos nos Globos de Ouro. Indicada na categoria melhor atriz pela 16ª vez, agora por Florence: Quem é Essa Mulher?, falou de forma firme sobre o discurso de ódio que ameaça se tornar hegemônico nos Estados Unidos.

Mahershala Ali, que concorre a melhor ator coadjuvante por Moonlight – Sob a Luz do Luar, mas aparece também em Estrelas Além do Tempo, aproveitou sua fala no SAG, o prêmio do sindicato dos atores, para se manifestar politicamente conta os posicionamentos do presidente norte-americano contra muçulmanos como ele. Não se sabe, ainda, qual será a postura oficial adotada pela emissora responsável pela geração e transmissão das imagens, e quanto de abertura os artistas terão para falar sobre política até que o volume da música suba.

Mas até mesmo a vitória de uma animação, Zootopia, pode suscitar comentários – ou ao menos sorrisos irônicos – dos adversários de Trump. Isso porque o vilão da história aqui é justamente um político que usa a retórica do medo para manipular a população a ponto de fazê-la acreditar que ele é o melhor nome para salvá-la dos problemas que ele criou.
 
Independentemente da postura dos vencedores, há ainda expectativa em torno do que dirão os apresentadores, em especial Jimmy Kimmel, o mestre de cerimônias responsável também pela fala de abertura, que costuma trazer comentários ácidos a respeito dos convidados e do contexto atual. Já no anúncio de seu nome para a função, Kimmel aproveitou para fazer piadas com a polêmica com que Trump se envolvera à época, uma ligação para Taiwan (ponto delicado na relação norte-americana com a China). Outra comediante cuja aparição é muito aguardada é Kate McKinnon, que interpretou a adversária de Trump, Hillary Clinton, durante toda a campanha presidencial no Saturday Night Live.

Os desmandos de Trump acabaram afetado diretamente a cerimônia, em especial sua postura islamofóbica. O mais alto ruído da cerimônia será o da ausência do iraniano Asghar Farhadi, diretor de O Apartamento, que não poderia viajar para os EUA após Trump ter barrado a entrada de cidadãos oriundos de países muçulmanos como Irã, Iraque, Líbia, Somália, Sudão e Iêmen.

A princípio, não estava claro se Farhadi poderia ou não cruzar as fronteiras norte-americanas para participar da cerimônia. O diretor resolveu a questão afirmando que não iria de qualquer forma aos Oscars 2017 como forma de protesto. Dificilmente esse fato deixará de ser mencionado ao longo da cerimônia.

Foi inclusive mencionada pela presidenta da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, Cheryl Boone Isaacs, durante o encontro de indicados que acontece todos os anos. “Todos aqui sabem que há cadeiras vazias nesta sala, o que nos torna a todos nós ativistas. Sociedades fortes não censuram as artes. Fronteiras não podem barrar nenhum de nós.”

Grande destaque da noite é o musical La La Land, aspirante ao posto de recordista em número de estatuetas. Uma homenagem aos musicais de outrora, o longa é cuidadosamente costurado para apelar à memória afetiva do público e encher o coração dos membros da Academia de saudosismo. A mistura de ambiente mágico e romântico em clima retrô é uma excelente e justificada forma de escapar às duras reflexões propostas por outros filmes. Tanto que venceu sete Globos de Ouro e foi indicado a 14 Oscars, correndo o risco de bater recordes e tornar-se o filme mais premiado da história.

Se há críticos que defendam sua indicação alegando que o cinema deve servir como forma de aliviar dores mais profundas da existência – e que dor maior para o norte-americano que o topete de Donald Trump -, o que seria uma forma de aliviar o clima de protesto que se espera da cerimônia, a equipe do filme já garantiu que não irá desperdiçar os discursos de aceitação apenas com acenos a familiares.

Um dos produtores, Jordan Horowitz, afirmou à Entertainment Weekly: “Serei politizado. Esperançoso e pessoal, mas politizado”.

John Legend, músico e produtor executivo do longa, aproveitou sua fala na premiação promovida anualmente pelo Sindicato dos Produtores para atacar diretamente Trump e reiterar que a visão de mundo que o filme e ele defendem não refletem aquelas do presidente atual.

Seja a cerimônia marcada pelos discursos políticos ou pelas tentativas de abafá-lo, o Oscar 2017 volta a algo que parecia convenientemente esquecido por Hollywood nas últimas décadas: o cinema é, sim, um ato político.