Império Serrano, símbolo da história do samba

 Os 70 anos da escola ajudam a elucidar a formação do gênero musical, da cultura nacional e do Brasil.

Por Pedro Alexandre Sanches, da Carta Capital

Império Serrano - Acervo Rachel Valença

Neste sábado de Carnaval, uma pequena escola de samba do segundo grupo desfilou o enredo Meu Quintal É Maior do Que o Mundo, em homenagem ao poeta pantaneiro Manoel de Barros. A escola está fora de moda (como talvez esteja Manoel de Barros, em tempos de Roberto Freire não ministro da não Cultura), mas vive uma data especial: em 2017, completa 70 anos de vida, vitórias e infortúnios.

O livro recém-lançado Serra, Serrinha, Serrano – O império do samba ajuda a resgatar tintim por tintim uma história bordada em esquecimentos, omissão e ocultação. No Império Serrano, sediado no Morro da Serrinha, na zona norte carioca, para lá de Madureira, nasceu e se desenvolveu um pedaço fulminante da história da música e da cultura brasileiras.

Ali nasceram os versos passava noite, vinha dia/ o sangue do negro corria/ dia a dia/ de lamento em lamento/ de agonia em agonia/ ele pedia/ o fim da tirania, compostos pelos gigantes Silas de Oliveira e Mano Décio da Viola para o samba-enredo Heróis da Liberdade, que ficou com a quarta colocação no Carnaval pós-Ato Institucional no 5, em 1969.

Serra, Serrinha, Serrano, de Rachel Valença e Suetônio Valença, saiu em 1981, quando a escola vivia seu primeiro ciclo de derrocada, a bordo do avanço do profissionalismo ultracapitalista sobre o samba de avenida. Fora rebaixada em 1978, depois de vencer oito carnavais nos primeiros 25 anos de existência.

Suetônio morreu em 2006. Rachel, também integrante de diretorias do Império em anos recentes, concluiu a tarefa de acrescentar os 33 anos mais tristes da história da escola que formou Silas, Mano Décio da Viola, Dona Ivone Lara, Aniceto Menezes, Roberto Ribeiro, Jovelina Pérola Negra, Arlindo Cruz e mais uma formidável galeria de bambas célebres ou anônimos.
A maioria absoluta deles é negra, por característica quilombola do Morro da Serrinha, berço também do jongo e das primeiras gravações de pontos de candomblé de que se tem conhecimento, pelo pioneiro Elói Antero Dias, em 1930.

Eis uma das características que explicam o nascimento do Império Serrano, desmembrado da antiga Prazer da Serrinha, então dirigida com autoritarismo por Alfredo Costa. A escola foi fundada por trabalhadores sindicalizados do cais do porto carioca, sedentos por liberdade no pós-ditadura de Getúlio Vargas.

Entre esses portuários estavam o fluminense de Resende Elói Antero e o carioca Aniceto Menezes, o Aniceto do Império, parceiro musical da jongueira Clementina de Jesus, que em 1984 gravaria um samba de terreiro chamado Mulher na Presidência.

No primeiro Carnaval desfilado pelo Império, com enredo em homenagem ao poeta abolicionista baiano Castro Alves (1847-1871), os portuários se concentraram na Central do Brasil, vestidos em elegantes ternos (que inspirariam a futura ala Amigos da Onça).

O desfile rendeu o primeiro campeonato, décadas antes da institucionalização, no Sambódromo, do Carnaval televisado pela Rede Globo. O feito se repetiria em 1949, 1950 e 1951, numa galeria de sambas-enredos que falam muito sobre os anseios e contradições das classes populares do Brasil da época.

Baiano de Santo Amaro, Mano Décio da Viola era um dos autores do samba de 1949, Exaltação a Tiradentes, em que a figura romantizada do personagem (que foi traído e não traiu jamais e foi sacrificado pela nossa liberdade) espelhava os anseios abolicionistas da comunidade da Serrinha, e além. Em 1971, sob cerrada ditadura civil-militar, a gaúcha Elis Regina imortalizaria uma versão MPB, intimista e tristonha.

O pano de fundo do entre-Getúlios era explosivo, sob o avanço de direitos trabalhistas promovido pelo líder gaúcho. Com uma bandeira que expunha a coroa do Segundo Reinado, o Império Serrano se parecia com rebeldes da virada do século XX, como os baianos de Canudos e os sulistas do Contestado, que viam na República a raiz de todo o mal, ao relacionar num mesmo conjunto de causas e efeitos a abolição da escravização sem acréscimo de direitos em 1888 e a derrubada da monarquia por cima em 1889.

O enredo vencedor de 1950, Batalha Naval do Riachuelo, exaltava o militarismo do Brasil imperial. Uma barafunda se fez em 1951 com 61 Anos de República, enredo anti-imperial que exalta os militares que deram termo à monarquia, o civil Prudente de Morais (que, apesar de tudo, terminou com a Guerra de Canudos) e… Getúlio Vargas.

Dizia a letra estilo hay gobierno,/ soy a favor, do ex-militar Silas: Hoje a justiça,/ numa glória opulenta/ a 3 de outubro de 1950/ nos trouxe aquele que sempre socorreu a pátria em horas amargas/ o eminente estadista Getúlio Vargas/ eleito pela soberania do povo.

Em alternância de poder com a Portela, a próxima vitória do Império viria em 1955, com Exaltação a Caxias, coassinado por Silas e Décio. Getúlio havia sido suicidado em agosto de 1954, num ato que adiaria em dez anos os versos proféticos da conclusão do samba: Honrosamente sentimos orgulhosos em acrescentar/ que este vulto encerra/ na paz e na guerra/ o ideal do Brasil militar.

Em 1956, Silas e Décio faturaram mais um campeonato com samba em louvor ao bandeirante Fernão Dias Paes Leme, O Sonhador das Esmeraldas, os oprimidos convertendo o opressor caçador de índios em herói redentor.

Em 1960, a dupla causou treta com o samba-enredo Medalhas e Brasões, que classificava a Guerra do Paraguai como brilhante página da nossa história militar e irritou o governo paraguaio ao chamar o vulto Solano López de ditador.

Em 1962, sob João Goulart, o enredo O Rio dos Vice-Reis parecia espelhar a sina da escola (além de um eterno retorno do Brasil de sempre) e ficou com o vice-campeonato. Às vésperas do golpe de 1964, Silas criou o clássico Aquarela Brasileira. Pela primeira vez, uma mulher, Carmen Silvana, era a puxadora do samba.

Como a provar que o circo pegava fogo, a morte de Ary Barroso, compositor da inspiradora Aquarela do Brasil (1939), foi anunciada quando o Império entrava na avenida. A bateria fez silêncio em sinal de luto, a escola perdeu pontos, e Aquarela Brasileira saiu da quarta colocação para a história.
O Brasil sob a ditadura viu o Império Serrano perder posições, mas não a inspiração. Em 1965, Dona Ivone Lara tornou-se a primeira compositora de um samba-enredo no asfalto, ao dividir Os Cinco Bailes Tradicionais da História do Rio com Silas e Bacalhau. Ficou em segundo lugar.

Em 1969, Heróis da Liberdade representou um canto de cisne para Silas e Mano Décio, em lamento contra o racismo e a escravização. A dupla foi chamada ao Dops para explicar versos como é a revolução/ em sua legítima raiz (que a Censura fez trocar por “é a evolução”) e soldados e tambores/ alunos e professores/ acompanhados de clarim/ cantavam assim:/ já raiou a liberdade/ a liberdade já raiou. Silas e Décio jamais voltariam a assinar um samba-enredo.

A escola seguiu por caminhos tortuosos. Venceu o Carnaval de 1972 exaltando Carmen Miranda sob versos autoelucidativos: cai, cai, cai, cai/ quem mandou escorregar/ é melhor se levantar. Após o rebaixamento de 1978, brilhou (e venceu o Carnaval) em 1982 com o histórico Bumbum Paticumbum Prugurundum, assinado por Beto sem Braço e Aluísio Machado, trabalhadores do morro que forneciam sambas para Martinho da Vila, Alcione, Beth Carvalho, Bezerra da Silva e Zeca Pagodinho.

Em 1997, o Império dedicou seu enredo ao caubói de parque de diversão Beto Carrero e amargou novo e até este momento definitivo rebaixamento. Passou a ser presidido pela primeira vez por uma mulher, Neide Coimbra, em 1999, após um processo de impeachment. Em 2012, homenageou Dona Ivone Lara, hoje com 95 anos. Com o global Arlindo Cruz entre os autores do samba-enredo, a escola-quintal ficou em segundo lugar e perdeu a chance de voltar ao Grupo Especial.