Luiz Malavolta: 95 anos depois

As chuvas torrenciais dos primeiros dez dias de fevereiro de 1922 produziram a maior enchente de que se tinha memória no Rio Jaú, noticiava a imprensa da capital paulista no dia 11 daquele ano.

Abaporu

“Quatro grandes pontes sobre esse rio foram arrancadas pelas águas, tendo rodado muitos pontilhões. O matadouro ficou completamente inutilizado. A parte baixa da cidade está inundada, chegando a água até o jardim público e o Theatro Rio Branco. As instalações da empresa de luz e força de Dois Córregos rodaram, sendo grandes os prejuízos. Os prejuízos da Câmara Municipal montam a trezentos contos aproximadamente, não se podendo ainda avaliar as perdas particulares”, relatava o correspondente do “Estadão” em Jaú.

No verão de 2017 também chove muito em São Paulo. Hoje, com chuva prevista esta tarde, faz 95 anos que foi lançada o que viria a ser considerada a maior revolução cultural de todos os tempos no Brasil. Trata-se da “Semana de Arte Moderna de 1922”. A seção “Artes e Artistas” do “Estadão” de 1922 noticiava o acontecimento sem alarde. Informava apenas que o encontro havia sido organizado por um grupo de jovens intelectuais músicos, escultores, pintores, escritores, poetas. Eles eram a vanguarda revolucionária e antropofágica das artes nacionais.

“Esta marcado para depois de amanhã, às 20h30, no Teatro Municipal o primeiro festival da ‘Semana de Arte Moderna’, no qual tomarão parte numerosos artistas de S. Paulo e do Rio de Janeiro” – noticiava o “Estadão”.

“Nesse primeiro sarau, o sr. Graça Aranha fará uma conferência sobre ´A emoção estética na arte moderna´, a qual será intercalada de números de música executados pelo maestro Ernani Braga e poesias por Guilherme de Almeida e Ronald de Carvalho. A seguir, o compositor Villa-Lobos executará vários números de música de câmera e o trio Paulina d´Ambrósio, Alfredo Gomes e Fructuoso de Lima Vianna tocará outras peças”. O jornal ainda informava que “a procura de bilhetes para esse festival tem sido grande”.

Hoje de manhã (11/02/2017), aqui em São Paulo, no Museu de Arte Moderna, será aberta uma mostra para celebrar o 95º aniversário da Semana de 1922. Paralelamente, se celebrará os cem anos da exposição de pintura moderna de Anita Malfatti. “Inicialmente, a mostra foi recebida com assombro e curiosidade: a visitação foi intensa, e Anita chegou a vender oito quadros”, relata a curadoria da mostra. Anita, porém, foi alvo de severa crítica do escritor Monteiro Lobato. “Há duas espécies de artistas”, escreveria Lobato. “Uma composta dos que vêem normalmente as coisas e em consequência disso fazem arte pura (…) a outra espécie é formada pelos que vêem anormalmente a natureza, e interpretam-na à luz de teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica de escolas rebeldes, surgidas cá e lá como furúnculos da cultura excessiva. São produtos do cansaço e do sadismo de todos os períodos de decadência: são frutos de fins de estação, bichados ao nascedouro. Estrelas cadentes, brilham um instante, as mais das vezes, com a luz do escândalo, e somem-se logo nas trevas do esquecimento”.

Monteiro Lobato não estava preparado para a vanguarda modernista de 1922. Chocou Malfatti, que não desistiu. Na noite de 17 de fevereiro de 1922 aconteceu o concerto de Villas-Lobos com cadeiras vendidas a $200 contos de réis, um dinheirão para a época. No saguão do Teatro Municipal estavam expostas as obras de Malfatti e esculturas de Victor Brecheret, o mesmo que esculpiu um dos símbolos da capital paulista, o Monumento às Bandeiras, no Ibirapuera, que vândalos já picharam, jogaram tintas e tentam depredar, porque odeiam a cidade que vivem.

O poeta Ronald de Carvalho estava na primeira fila desse concerto. No dia 18 de fevereiro escreveu uma entusiasmada crítica sobre a Semana de 1922 e sobre a apresentação de Villa-Lobos. “A arte é uma aspiração à liberdade”, proferiu o modernista. “Cada um de nós é um instrumento por onde passa a corrente da vida (…). Não queremos regras nem admitimos preconceitos. Villa-Lobos ama a vida. A música de Villa Lobos é uma das mais perfeitas expressões da nossa cultura. Palpita nela a chama da nossa raça, do que há de mais belo e original na raça brasileira”, escreveu.

Oswald de Andrade era o mais vanguardistas de todos, até porque foi o elemento agregador do grupo de jovens artistas que se organizaram para fazer a Semana de 1922. Seis anos depois daquele evento, ele publicou o chamado “Manifesto Antropófago (ou Antropofágico)”. O texto foi publicado no número 1 da “Revista de Antropofagia”, dirigida pelo escritor modernista Antonio de Alcântara Machado, autor do clássico livro “Brás, Bexiga e Barra Funda”.

Dizia o manifesto: “Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz.

Tupi, or not tupi, that is the question.

Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gracos.

Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago.

Estamos fatigados de todos os maridos católicos suspeitosos postos em drama. Freud acabou com o enigma mulher e com outros sustos da psicologia impressa.

O que atropelava a verdade era a roupa, o impermeável entre o mundo interior e o mundo exterior. A reação contra o homem vestido. O cinema americano informará.

Filhos do sol, mãe dos viventes. Encontrados e amados ferozmente, com toda a hipocrisia da saudade, pelos imigrados, pelos traficados e pelos touristes. No país da cobra grande.

Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de velhos vegetais. E nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental. Preguiçosos no mapa-múndi do Brasil.

Uma consciência participante, uma rítmica religiosa. (…)

Queremos a Revolução Caraíba. Maior que a Revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem. Sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem. (…)

Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará. (…)

O espírito recusa-se a conceber o espírito sem o corpo. O antropomorfismo. Necessidade da vacina antropofágica. Para o equilíbrio contra as religiões de meridiano. E as inquisições exteriores. (…) Em Piratininga. Ano 374 da deglutição do Bispo Sardinha”.

Hoje, nossa antropofagia é outra. Estamos nos canibalizando moral, social e culturalmente.