Ricardo Flaitt: O creme de avelã está matando o futebol brasileiro

A vida, em sua essência, é simples, cotidiana, até banal. E é justamente nas coisas ínfimas onde residem nossas maiores alegrias. Mesmo assim, o ser humano insiste em colocar penduricalhos na existência, insiste na gourmetização.

Por Ricardo Flaitt, no jornal Lance!

Torcida do Flamengo no Maracanã dos anos 1980

O fenômeno embelezador-civilizatório também chegou ao futebol, que sofre com essa necessidade de quererem transmutar o que é simples, em algo especial, sem nos perguntarem o que é de fato especial para nós, os torcedores.

Futebol, como a vida, já é especial por si só. Seja na pelada praticada na rua, num estádio do interior ou em campo ultrassofisticado, tudo começa e termina com 22 homens, correndo atrás de uma bola, tentando, desesperadamente, ao longo de 90 minutos, fazê-la atravessar por um retângulo, em um ato que se chama gol, que arranca da gente os ruídos mais viscerais, mais primitivos.

Os burocratas nunca entenderão, mas o futebol compreende a vida.

Movido por um conceito de "modernidade", principalmente depois da Copa do Mundo no Brasil, o futebol ganhou tantos ângulos, padrões, tantas análises, tantos números, tantos scoutings que, em certos momentos, a gente até fica em dúvida se se trata de um jogo de bola. O futebol fico tão "importante".

Esse movimento do "futebol científico" não é novo. A antiga URSS já levara ao extremo esse conceito, lá nos idos de 1958, na Copa do Mundo, na Suécia, quando colocaram réguas, esquadros, compassos para compreender o futebol brasileiro e, consequentemente, tentaram parar um gênio, chamado Garrincha, que, com suas pernas tortas e sem combinar com os russos, desmontou todas as teorias com sua intuição.

Longe deste texto ser uma apologia ao retrocesso, ao arcaico, em um movimento nostálgico-piegas. Sem dúvida que o futebol precisa da ciência. O que não se pode fazer é colocar todas as explicações do universo nas Exatas, porque na bola e na vida, o que nos rege é o imponderável, o inexplicável, o metafísico.

Fosse o futebol fruto único e exclusivo da ciência, nunca um Gabiru desmoronaria o Barcelona de Ronaldinho Gaúcho e cia. ltda. Nunca um Garrincha passaria numa peneira: seria descartado, considerado inválido, segundo as estatísticas, encaminhado ao INSS.

O grande problema é que, na ânsia dos cartolas quererem transformar o futebol brasileiro – no sentido de espetáculo – o mais próximo de um produto com selo de exportação, estão forçando a barra, desconsiderando as nossas características, a nossa fragilidade econômica, as nossas discrepâncias sociais, o nosso modo de ser. Estão passando muito creme de avelã no pão de cada dia de nossa realidade.

Sendo o futebol a expressão de um povo, com certeza, esse "new futebol", que exclui os menos favorecidos por meio dos altos valores nos ingressos, que não quer mais exibir os desdentados na televisão, que nos forçam sentar em cadeiras para que assistamos à partida inertes como se um índio cantando para os nobres europeus, esse futebol que não existe bandeira, que não tem bumbo, que não tem bandinha, de fato, não condiz com as nossas raízes.

Tudo se transfigurou quando os mercadores transnacionais da bola venderam-nos, e lucraram muito em cima de um conceito e o padrão de modernidade sobre o nosso espetáculo. Assim, sumiram com nossas arquibancadas, esconderam a geral, embalaram os ambulantes em uniformes de lanchonetes americanizados, agregaram valor através de camarotes, silenciaram os radinhos de pilha. Limparam a paisagem.

Retiraram também de nós o lanche de pernil, aquele suculento, que escorre óleo no canto da boca, e empurraram-nos um pão com creme de avelã, que não combina com as necessidades primevas do brasileiro e a sua relação sentimental com a bola.

Segmentaram, fracionaram, segregaram, dividiram um dos poucos momentos em que as camadas sociais se compreendiam por um só sentimento, o do seu time de coração.

Os que os engravatados não enxergaram, como sempre, é que enquanto tentam domesticar o nosso modo de torcer, os europeus, que antes levavam nossos craques, agora também assimilam nosso antigo modo de vibrar.

Ao ver um jogo do Borussia Dortmund, da Alemanha, é impossível não enxergar que a gente também torcia daquele jeito. Ninguém está aqui vociferando a favor de estádios ou "arenas" – como queiram – sem condições estruturais, obsoletas; mas sim que a atualização seja feita considerando as características do nosso povo.

Os dirigentes não compreenderam que em torno de um estádio existe um povo, um país. E o brasileiro, ligado umbilicalmente ao futebol, movido pela paixão, está longe de ser racional, burocrático, científico. Porém, os tecnocratas, munidos de cifras, estão transformando, gradativamente, os torcedores em coisa, em objeto, em marca, em slogan, em números.

O grande Manoel de Barros, em Retrato do artista quando coisa, já se rebelara diante da coisificação da vida: "Não aguento ser apenas um sujeito que abre portas, que puxa válvulas, que olha o relógio às 6 da tarde, que aponta lápis". No futebol, não aguentamos ser um sujeito que fica sentado, tendo que ser contido em nossas emoções, que tem de assistir uma partida de futebol como se uma ópera. No Brasil, de Garrincha, não é assim.

Se por um lado o creme de avelã tem a função de "embelezar" nossa realidade, em contrapartida, há um efeito colateral, que produz refluxos: muitos torcedores estão se afastando dos novos estádios.

As "arenas" estão cada vez mais minguadas em seus públicos; porque o torcedor brasileiro, além da segregação financeira, não se sente mais parte dessa "modernidade", que chegou ao ponto de transformar o Maracanã, um templo mundial da bola, em um objeto estranho no corpo da cidade e no coração dos torcedores.