Espírito Santo: O modelo de uma tragédia brasileira

Para compreender mais amplamente a situação pela qual vem passando o estado do Espírito Santo é necessário recorrer ao passado. É o que sugere o professor de Comunicação Social da Universidade Estadual do Espírito Santo, Fábio Malini. Ele destaca que essa crise de hoje tem conexão direta com o ano de 2003, quando o estado estava completamente quebrado e começa uma espécie de plano de recuperação.

Espírito Santo - Divulgação

“É um modelo de gestão que beneficia em muito modelos empresariais na área de commodities do Espírito Santo e que tem um conjunto muito grandes de renuncias fiscais que faz, num contexto de crise, a arrecadação do estado cair”, explica.

O resultado desse arrocho aparece nos serviços públicos que devem ser oferecidos pelo Espírito Santo. Servidores com salários congelados chegam a 2017 com uma situação insustentável. “Isso vai demonstrando que esse modelo de estado, pautado na austeridade fiscal, não consegue deter um acúmulo de conflitos sociais que ele mesmo produz. Esse pano de fundo acaba sendo terreno fértil dos conflitos sociais que acontecem no Espírito Santo”, analisa Malini em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line.

O professor ainda não descola de sua análise a situação nacional. De certa forma, a experiência do Espírito Santo serve de prenúncio pelo que podem passar outros estados como Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro, e até mesmo a União. “Nesse sentido, o Espírito Santo acaba sendo um próprio modelo da tragédia brasileira”, dispara. E alerta: “Em pouco tempo, os bens públicos começam a serem entregues, de bandeja, para o setor privado, como acontece no Estado do Rio. E a tendência, me parece, a continuar essas políticas contracionistas é de piorar o quadro social brasileiro”.

Fábio Malini é professor do Departamento de Comunicação da Universidade Federal do Espírito Santo desde 2005. Coordena o Laboratório de estudos sobre Imagem e Cultura – LABIC/UFES, onde desenvolve pesquisas sobre ciência de dados, movimentos sociais e redes sociais (com especialidade em coleta, processamento e visualização de megadados). Escreveu, em co-autoria com Henrique Antoun, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, o livro A internet e a Rua (Sulina, 2013).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como o senhor vem acompanhando as manifestações de familiares de policiais militares e a questão da segurança pública no Espírito Santo?

Fábio Malini – Essa manifestação se tornou popularizada no Espírito Santo na noite de domingo [dia 05/02] para segunda-feira [06/02]. É quando começam a circular as informações de que os familiares dos policiais militares bloqueavam mesmo a saída dos carros dos quartéis e que circulava um vídeo do secretário de Segurança, André Garcia, em que dizia que não iria negociar nos termos solicitados pelos familiares. E como familiares leiam-se as esposas, namoradas, mãe e irmãs dos policias, basicamente. Majoritariamente isso porque não há somente homens na Polícia Militar.

Claro que essa é uma primeira narrativa que também é construída pelo campo midiático para tentar criar um nível de polarização entre os “familiares” e a “sociedade”. Ou seja, a sociedade ser contra o pleito dos familiares. Num primeiro momento, é o que ocorre. É bom saber, também, que os policiais vêm num processo de degradação com relação aos seus salários e essa degradação tem muito a ver com a política de ajuste fiscal do atual governo do Estado, que reduziu muito os investimentos nos gastos públicos. Isso acaba tendo um efeito concreto na qualidade dos serviços públicos, que passa objetivamente pela qualidade da segurança pública e da política que é implementada.

Assim, esse processo dispara, na segunda-feira [6/2], um caos na cidade. Há um recolhimento em massa das pessoas nas suas casas, numa espécie de cárcere privado. E isso produz duas dinâmicas: uma dinâmica de saques e crimes contra a propriedade nas regiões mais centrais e mais ricas das cidades e uma onda de violência ligada ao tráfico de drogas, basicamente, nas periferias das cidades onde acontecem mais de 120 mortes. É algo desesperador.

IHU On-Line – Quais as questões de fundo desse movimento, como compreendê-lo com toda sua complexidade? Que campos estão em disputa?

Não é algo ligado apenas ao atual governo do PMDB. É também uma sequência de gestões que passam desde a recuperação do estado em 2003

Fábio Malini –
É claro que essa questão passa pelo modelo de estado que se implementou já há alguns anos no Espírito Santo, não é algo ligado apenas ao atual governo do PMDB. É também uma sequência de gestões que passam desde a recuperação do estado em 2003, quando ele estava completamente falido até agora. É um modelo de gestão que beneficia em muito modelos empresariais na área de commodities do Espírito Santo e que tem um conjunto muito grandes de renuncias fiscais que faz, num contexto de crise, a arrecadação do estado cair. Além de que o estado tem, obviamente, uma queda grave de arrecadação em função da própria crise econômica que acontece e também pelo fato de que 5% do seu PIB vinha sendo preenchido pela Samarco. Assim, ela deixando de operar também faz cair a arrecadação. Veja como a receita tem a ver com a crise, mas também com o modelo de renúncia fiscal.

Por outro lado, o governo atual já vem vivenciando uma série de revoltas noticiadas nacionalmente. Tem, num primeiro momento, uma grande revolta dos estudantes secundaristas, que depois vão ter um segundo momento na onda de ocupações que acontecem no final do ano passado, existe a crise ambiental e hídrica, que é algo seríssimos no Espírito Santo e, agora, a questão da segurança pública. Isso vai demonstrando que esse modelo de estado, pautado na austeridade fiscal, não consegue deter um acúmulo de conflitos sociais que ele mesmo produz. Esse pano de fundo acaba sendo terreno fértil dos conflitos sociais que acontecem no Espírito Santo.

Nesse sentido, o Espírito Santo acaba sendo um próprio modelo da tragédia brasileira. Ou seja, isso porque, após o impeachment da presidente Dilma Rousseff, a política de ajuste continuou. Lembrando que Dilma vinha também produzindo uma política de ajuste agressiva e isso se atenua no pós-impeachment, enquanto o Espírito Santo se torna o modelo ideal para o país.

Chegamos, agora, numa realidade em que vemos que essa política de austeridade produz um acúmulo de conflitos sociais e esse acúmulo de conflitos sociais começa a transbordar pelas ruas.

Claro que, ao mesmo tempo, se tem também fatores muito locais, das políticas locais, em que a gestão atual produziu também um conjunto grande de adversários políticos e isso em função de uma divisão política do grupo que governava o estado desde 2003. Essa divisão política atenua as possibilidades de construção de uma pauta de negociação que passa também pelo apoio de lideranças políticas que agora se ausentam de qualquer tipo de mediação tanto com os policiais como com os familiares.

IHU On-Line – Quem são as vítimas da violência no Espírito Santo? Onde ocorrem a maioria das mortes?

Fábio Malini – Toda a sociedade, não é só um grupo que está sendo vítima da má gestão da política de segurança pública. Acontece que, obviamente, nos setores periféricos da cidade, onde existe conflitos armados e guerra entre pequenos e médios traficantes, a população se sente muito mais acuada porque a onda de tiroteios, saques, roubos é muito mais intensa do que nas áreas mais centrais, nas áreas mais nobre em que se tem um processo de ampliação da guarda municipal, tem a presença do Exército. Há, obviamente, uma segregação da política de segurança sendo instalada. E há, ainda, muitos outros receios como, por exemplo, a gestão dos presídios. Não se sabe até agora como estão acontecendo as gestões dos presídios, o que gera um certo pânico diante da possibilidade de rebeliões também acontecerem dentro deles.

IHU On-Line –
Pela cobertura que a imprensa nacional vem dando à situação do Espírito Santo, pode-se concluir que a PM e seus familiares, apesar de apresentarem reivindicações legítimas, são os responsáveis por toda onda de violência. Em que medida isso corresponde ao que o senhor vê aí no estado?

Fábio Malini –
Se você analisa dentro de um contexto de que os policiais militares são uma categoria de servidores públicos impedidos de fazerem qualquer tipo de paralisação e greve, há uma inconstitucionalidade dos seus atos. Nesse sentido, as responsabilidades pelos crimes que estão acontecendo seriam deles, do ponto de vista do discurso midiático. Mas, na realidade, quando você pondera questões ligadas à própria vida dos policiais militares, à própria condição de trabalho desses policiais militares, a questão passa a ser outra.

É uma categoria que precisa de reposição salarial de 43%, é a categoria de policiais militares no Brasil com o pior salário no começo de carreira, é uma categoria que vivencia uma redução da sua capacidade de operação. Por exemplo: vários carros que só saem com gasolina contada, muitos carros parados por problemas de manutenção, etc. E tudo isso além de ser uma categoria que vivencia muito mais a possibilidade de morte dado os conflitos que precisa enfrentar.

E, obviamente, aliado ao estado que renuncia a sua capacidade de arrecadação de impostos para grandes empresários e, ao mesmo tempo, faz um processo de arrocho dos salários de seus trabalhadores. Quando se coloca essa discussão em jogo, claro que os pesos dessa balança tendem a serem redefinidos. Me parece que o grande conflito acontece aí, de um lado você tem uma responsabilização dos policiais, mas, no debate político, quando acontece com a sociedade, você também tem uma responsabilização do governo.

Como a situação vinha aparecendo nas redes sociais? E, em que medida contaminava o que de fato estava acontecendo?

Fábio Malini – Houve duas fases nas redes sociais. A primeira foi da incerteza, quando não se sabia o que estava acontecendo, não se sabia o que estava por acontecer. Assim, houve uma circulação de boatos, muito em função da ansiedade das pessoas em obterem as informações e circularem essa informação para se proteger. Essa condição de incerteza aconteceu muito no domingo [05/02] e na segunda-feira [06/02]. A partir da terça-feira [07/02], quando, de fato, se caracteriza uma paralisação e um aquartelamento dos policiais militares, começa o debate público nas redes sociais.

É quando se discute exatamente todas as ponderações associadas ao aquartelamento, desde pontos de vista que o criticam, do ponto de vista que o defendem, há discussão em torno do Exército nas ruas. Enfim, as redes sociais passam a ser um palco mais de debate político. É o momento das certezas. Sendo um mundo das incertezas, as redes sociais cumprem esse debate de alargar as informações sobre o que acontece no Espírito Santo. Até mesmo para criar redes de solidariedades, para as pessoas poderem se movimentarem, para saberem onde que estão os supermercados, as padarias, as farmácias que estão abertos, como fazer para manter a doação de sangue. É toda uma dinâmica de sobrevivência que acontece muito em função das redes sociais.

É claro que, num período de incerteza, as redes funcionam muito mais intensamente como espaço da boataria e do rumor, mas isso é logo reduzido em função das informações oficiais que vão chegando, serenando mais o espírito. As redes têm também um papel de internacionalizar o fato, já não é mais nem nacionalizar o fato. Ou seja, faz com que aquela informação que seria apenas local, até mesmo aquele drama que seria apenas local, se nacionalize para que então se politize e para que outras autoridades possam estar atentas ao que está acontecendo no Espírito Santo.

Até esse momento, o presidente da República sequer mencionou o fato publicamente. Isso demonstra uma total omissão da presidência em relação aos temas que estão acontecendo em Vitória. A única mediação possível é o envio de Forças Armadas para o Espírito Santo que, mesmo tendo atualmente 3 mil homens, sequer chega a capacidade de parar a sangria literal. Ou seja, parar o conjunto de homicídios que vêm acontecendo na periferia das cidades.

Quando e como foi o ápice da crise nas redes sociais?

 O grande ápice, como referi anteriormente, foi na segunda-feira [06/02]. Depois, com a chegada das Forças Armadas, da Força de Segurança Nacional, ocorreu um pouco mais de calma e reduziu a ansiedade, as pessoas começaram a fazer suas atividades na rua, com muito limitação, mas, enfim, começaram. Agora, nesse momento [manhã de sexta-feira, dia 10/02] há uma queda de braço entre o governo e os policiais militares. O governo tem um viés de não deixar pedra sobre pedra, e os militares tentam negociar algum ganho salarial. O governo começa a notificação de prisões e indiciamentos de 700 policiais, enquanto os militares sê mantém em aquartelamento. E a população não está confiando em sair e ficar à mercê das Forças Armadas e da Força de Segurança Nacional. Esse é o nível de tensão [da sexta-feira, dia 10, por volta das 12h].

IHU On-Line –
No mapeamento que o senhor fez nas redes sociais, percebeu a incidência de robôs nas postagens. Como se dá e como compreender – qual a função, o objetivo – essas postagens?
Robôs pró-militares passam a publicar e difundir informações de caos, saques, mortes, omissões do governo, notícias falsas

Esse foi justamente o período da incerteza, quando os robôs pró-militares passam a publicar e difundir informações de caos, saques, mortes, omissões do governo, notícias falsas. Todo um arsenal é utilizado para propagar a defesa das ações da Polícia Militar. O que realmente nos assusta é saber que o estado tem em suas mãos, através de estratégias militares, um conjunto tão grande de perfis que funcionam como robôs para qualificar ou desqualificar um determinado tipo de assunto.

Como o senhor analisa os movimentos que aconteceram nas redes sociais entre a quinta-feira, 09/02, e a madrugada de sexta-feira, 10/02, no Rio de Janeiro, havendo até a suspensão de transporte coletivo? Qual sua avaliação sobre a cobertura dos grandes veículos de imprensa no caso do Rio de Janeiro?

 O padrão é sempre o mesmo. Convocatórias em alta intensidade de posts no Facebook, WhatsApp e Twitter. E, permeado a uma narrativa do caso, produção de fake news [notícias falsas]. No Rio de Janeiro, onde a intensidade de conflitos dura desde 2013, o aparelho de Estado conseguiu criar uma infraestrutura para se contrapor aos movimentos na rede. De um lado, perfis oficias se antecipam, em tempo real, a responder que a situação será de normalidade. De outro, a imprensa repete o mantra do governo. É uma dobradinha já conhecida no mundo carioca. Mas também é uma relação instável, porque é impossível ocultar os dramas pessoais do funcionalismo e a sequência de roubos da gangue do Sérgio Cabral.

Também nas grandes empresas de comunicação, há o discurso de que policiais do Rio Grande do Sul e do Rio de Janeiro estão em situação pior porque recebem os salários atrasados e não estão aquartelados. Que efeitos essa narrativa pode ter sobre Espírito Santo e até mesmo Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul?

Pouco. Por quê? Porque o governo atual recebeu o estado em melhores condições financeiras que no Rio e no Rio Grande. E criou poupança através do arrocho salarial ao mesmo tempo que concedeu benesses para os empresários. Então, nada mais justo que os servidores públicos reivindiquem o direito a essa poupança. Mas há também problemas que derivam da impopularidade que a PM tem dentro da sociedade civil, em função da longa história de repressão aos anseios populares, ao mesmo tempo que uma geração (3 mil novos soldados) de soldados não "respeitam" as hierarquias autoritárias e abusivas da PM. É uma crise dentro e fora, que, parece, tem potencial de exportação para os outros estados federados.

O senhor destaca que o Espírito Santo viveu uma situação de falência em que a austeridade e o ajuste fiscal foram os únicos caminhos postos para superar a crise financeira. Qual a lição do Espírito Santo para estados como Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro, que passam por sérias dificuldades financeiras e que o governo federal, embora em crise, condiciona auxílio à implementação de planos de ajuste fiscal?

 Sem dúvida, a política de ajuste significou um arrocho sobre os salários do funcionalismo. Isso, no caso do setor policial, fez explodir um endividamento entre os PMs, ou adquiridos em bancos ou com agiotas. Não à toa que, nessa crise, muitos deles passam por pressão psicológica e até tentam suicídio. O impacto vai além. Nas condições de trabalho e na infraestrutura pública, que se degrada. Na situação capixaba, a frota está totalmente sucateada, a gasolina é permanentemente controlada e os policiais precisam revezar coleta à prova de bala, enquanto isso a política de renúncia fiscal do Espírito Santo é protegida por sigilo, garantida por lei estadual. Um total absurdo.

É uma panela de pressão que já vem estourando: ocupações das escolas, crise hídrica (que é basicamente a incapacidade do Estado em investir em política de segurança hídrica), greve dos PMs. Em pouco tempo, os bens públicos começam a serem entregues, de bandeja, para o setor privado, como acontece no Estado do Rio. E a tendência, me parece, a continuar essas políticas contracionistas é de piorar o quadro social brasileiro.

Como avalia todo esse processo, agora que policiais já começam a voltar para as ruas no Espírito Santo? E o que fica de todo esse episódio?

Há um baixo contingente de policiais na rua, entre 5 a 10% da tropa. Muitos destes não possuem experiência com o chamado "policiamento ostensivo". Então, há um clima de normalidade que é todo voltado a dar serenidade às classes médias e altas, protegidas por guardas, esses policiais e o Exército. Contudo, nas periferias, a situação é a mesma "anormalidade", com guerras entre traficantes, acertos de contas e grupos de extermínios, fazendo o número de homicídio, em sete dias, bater, até agora [manhã de segunda-feira, dia 13/02], as 164 mortes.

Enquanto isso, os policiais continuam aquartelados. Não há negociação salarial no horizonte. E não se sabe se, ao voltarem, a taxa de homicídios vai continuar, dado o "sangue nos olhos" que essa tropa pode vir a estar, o que tem sempre como consequência a mortes dos pobres e pretos das periferias.