A China, dona da bola

O futebol virou paixão nacional, com craques de verdade e dinheiro farto.

Por Nirlando Beirão, da Carta Capital

Futebol Chinês torcida - Foto: Luo Bo/ Imaginechina/ AFP

O futebol chinês está flertando com Diego Costa, seus gols e seus problemas. Na virada do ano, já havia recrutado Carlitos Tevez, seus gols e suas soluções. Ao encrenqueiro atacante do Chelsea, sergipano expatriado para a Espanha, o Tianjin Quanjian, que acaba de subir para a Primeira Divisão da CSL (Chinese Super League), estaria disposto a pagar o correspondente a 570 mil libras (2,2 milhões de reais) por semana, num total de 30 milhões de libras (116 milhões de reais) por temporada. O Chelsea estaria disposto a renovar com Diego Costa por 200 mil libras semanais (777,5 mil reais). O caso está criado.

Já o Shanghai Shenhua, quarto colocado em 2016, decidiu investir, com o argentino Tevez, num irretocável exemplo de profissionalismo e na convicção justificada de muitos troféus. Em todos os países onde Tevez desfilou seu apetite pela bola, a começar por sua exuberante passagem pelo Corinthians, ele abiscoitou algum título.

Itália (Juventus), Inglaterra (Manchester United e Manchester City), Argentina (Boca Juniors) – a vocação de campeão de Carlitos Tevez fez com que ele adiasse a anunciada aposentadoria, no Boca Juniors, onde começara 15 anos atrás, com um argumento para lá de convincente: está ganhando 615 mil libras (2,5 milhões de reais) por semana, desde que botou os pés em Xangai. Total: 32 milhões de libras (126,4 milhões de reais) por ano.

Aos 32 anos, passou a ser o mais bem pago craque da bola em todo o mundo, superando, com folga, Lionel Messi, que ironicamente embirrou com Tevez a ponto de vetá-lo na Seleção argentina.

A milionária escalada dos times da Chinese Super League em busca de reforços mostra que caixa não é problema. A revoada de craques premium – diferente dos países árabes e mesmo do Japão, que costumam recrutar estrangeiros no crepúsculo de suas carreiras – expõe o potencial de um mercado disposto a surpreender.

Pouco antes de Tevez, quem mereceu dos chineses as honras do estrelato, em transação inesperada, foi o brasileiro Oscar, até então no Chelsea. Mesmo amargando o banco no time londrino, o meia da triste Seleção de 2014 seguiu em dezembro para a outra equipe de Xangai, o Shangai SIPG, terceira colocada em 2016. Lá, vai encontrar seu ex-treinador do Chelsea, o português André Villas-Boas, e, na boca do caixa, a cada semana, a ninharia de 400 mil libras (1,6 milhão de reais). Com seus 20 milhões de libras anuais (84 milhões de reais), Oscar se equipara a Cristiano Ronaldo.

Quer dizer, o yuan não tem mais o menor pudor em inflacionar dramaticamente o negócio global do futebol. A pergunta obrigatória é: quem está pagando essa fatura bilionária? O governo é que não é, diretamente não, ainda que o presidente Xi Jinping seja um fã de carteirinha do futebol e seu governo esteja investindo 850 bilhões de dólares (2,7 trilhões de reais) até 2025 em um fundo poliesportivo que faça da China a número 1 do mundo em competições olímpicas, futebol inclusive. O governo incentiva a criação de uma Liga de futebol forte, com clubes vigorosos – sabendo que só assim poderá concretizar o sonho de sediar uma Copa do Mundo.

O investimento é, portanto, das empresas, públicas e privadas, e elas obedecem à lógica capitalista de pelo menos não jogar dinheiro fora – e de faturar algum, se possível. O raciocínio tem feito sentido e o dinheiro tem sido camarada para quem investe. A CSL vendeu por 9 milhões de dólares a transmissão para o exterior das partidas da Primeira Divisão, em 2015; em 2016, a presença de craques reconhecidos elevou a cota de tevê para 200 milhões de dólares. Nos próximos cinco anos, a CSL espera faturar 1,25 bilhão (quase 4 bilhões, em reais). O campeonato chinês já é assistido hoje por 53 países (no Brasil, pela BandSports).

Os números tendem a crescer em ritmo… chinês. O campeonato, com 16 clubes, conseguiu atingir uma média de público de 25 mil espectadores na última temporada. A mesma de La Liga espanhola. Bem superior aos 15,2 mil torcedores do Brasileirão 2016. Dez anos atrás, na China mal chegava a 10 mil. O patrocinador máster, a companhia de seguros Ping An, desembolsou ano passado 181,5 milhões de dólares para ter seu nome exposto por todo lado. Uma migalha para uma seguradora que, de Hong Kong e Macau, manuseia ativos de 645,7 bilhões de dólares (à Pirelli, patrocinadora máster em 2009 e 2010, bastou a contribuição de 6,3 milhões de dólares anuais para a CSL).

O futebol deve experimentar uma expansão em progressão geométrica, não só porque agora é que um país de 1,3 bilhão de habitantes (duas Europas, quatro Estados Unidos, 4,5 Brasis) começa a acreditar em seu potencial, mas também porque, ao contrário do que acontece em outros países, na China o futebol tende a ser, em termos de esporte coletivo, a única paixão nacional.

Todo o esforço norte-americano de inflar a MLS (Major League of Soccer), por exemplo, enfrenta a competição do basquete, do futebol americano, do beisebol, do hóquei – profissionais e colegiais. Nem mesmo as disputas europeias distraem os chineses. O horário das transmissões inviabiliza o fenômeno que se assiste hoje, por exemplo, no Brasil: a garotada passa a torcer mais pelo Arsenal ou pelo Barcelona do que pelo seu time local.

A aposta nos superastros tende a tornar a temporada 2017 mais renhida e competitiva, mas o Guangzhou Evergrande, campeão nas últimas seis edições, ainda é o time a ser batido. Seu treinador foi escolhido em 2015 e 2016 como o melhor do ano – e treinador de renome é o que não falta no futebol chinês. O nome dele é Luiz Felipe Scolari.

O Guangzhou Evergrande, da antiga Cantão, no Sul da China, costuma também emplacar o craque do ano. Em 2016, foi Ricardo Goulart, ex-Cruzeiro; em 2013 e 2014, o premiado foi Elkeson, revelado pelo Vitória e que passou sem muito brilho pelo Botafogo (Elkeson mudou de time e agora vai fazer tabelinha com Oscar e Hulk no ataque do Shanghai SIPG).

Não chega a ser surpresa que a China bilionária preste muito mais atenção hoje nos talentos exibidos nos gramados europeus do que nos jogadores que se esfalfam nos campeonatos periféricos. O foco, definitivamente, mudou. Entre 2013 e 2014, os reforços mais notáveis foram Vagner Love e o argentino Walter Montillo. Ambos jogavam no Brasil. E os dois já deixaram a China. Um ano depois, foi a vez de Ricardo Goulart e Diego Tardelli. Em 2016, os chineses ainda se interessaram por Renato Augusto e Gil. Nesta janela de temporada, o suposto interesse por Lucas Lima, do Santos, e pelo argentino Lucas Pratto, que defende o Atlético-MG, ainda não se confirmou. A solitária exceção é o ponta Marinho, ex-Vitória, comprado pelo Changchun Yatai).

Ao estilo que espelha o próprio regime, um capitalismo sob controle, a Liga vai impondo sutis limitações à avalanche de estrangeiros, ao mesmo tempo que dá animadoras boas-vindas a eles. Pela nova regra, nenhum clube pode ter mais de quatro estrangeiros no elenco (eram cinco) – e só pode entrar com três, no máximo, em campo (antes, quatro). Criou-se igualmente uma curiosa reserva de mercado: desde que a CSL administra os campeonatos, o goleiro das equipes tem de ser obrigatoriamente chinês.

Lá, profissionalização rima também com regulamentação. Até recentemente, os times eram, por assim dizer, itinerantes, podiam, ao sabor dos patrocínios auferidos, ir mudando de sede, de cidade em cidade. É o caso do Renhe, que, em menos de dez anos, se deslocou por cerca de 5 mil quilômetros. A Liga entendeu que clube forte tem de ter inserção numa comunidade e a itinerância foi abolida. Hoje, o Renhe está solidamente encastelado em Pequim, com o nome de Beijing Renhe, mas ainda tenta voltar à Primeira Divisão.

Menos espetacular do que os salários destinados aos talentos de dentro de campo, o pacote pecuniário que atrai os treinadores configura, ainda assim, pequenas fortunas. Além do vitorioso Felipão, outros sete figurões de prestígio internacional atuam fora das quatro linhas, entre eles o italiano Fabio Cannavaro, capitão da Seleção campeã do mundo em 2006, o sérvio Dragan Stojkovic, que treinou a Seleção da Iugoslávia, e o chileno Manuel Pellegrini, ex-Real Madrid e Manchester City.

Às vezes, a galinha dos ovos de ouro pode frustrar as ambições mais desmesuradas. Vanderlei Luxemburgo mal podia agasalhar aquele seu imponente ego na Segunda Divisão, a bordo do Tianjin Siongjiang. Após 12 partidas, na temporada 2016, foi dispensado. Mano Menezes durou um pouco mais – 21 jogos – no Shandong Luneng, da Primeira Divisão. Foi igualmente convidado a sair.

De todo modo, a Liga chinesa continua falando português com notável fluência. Dos 16 times que a disputam, só cinco não têm jogadores brasileiros. Ao todo, são 24 – ainda contabilizando Jadson e Luís Fabiano, que estão se despedindo. Dos brasileiros em campo, dez já tiveram passagem pela Seleção e três (Renato Augusto, Paulinho e Hulk) estão no time de Tite.