Gustavao Noronha: A reforma agrária persiste

O programa de distribuição de terras brasileiro é considerado o maior do mundo, só que ocorre principalmente na Amazônia Legal em áreas de titulação de populações tradicionais ou assentamento em terras públicas.

Por Gustavo Noronha*, no Brasil Debate

Reforma agrária MST

Está na moda entre os setores ligados aos ruralistas no Brasil dizer que a reforma agrária teria fracassado, como se o Brasil tivesse implementado uma reforma agrária. Relatório da OXFAM divulgado em novembro de 2016 confirma que o índice Gini de concentração da terra no Brasil não se reduziu nos últimos anos, ao contrário, que a concentração da terra aumentou, de acordo com dados do Censo Agropecuário do IBGE de 2006. O Brasil inventou, caso único no mundo, a reforma agrária perene.

Os dados do Censo também apontam um contingente de 809.811 produtores rurais sem terra e 1.049.000 produtores com minifúndios inferiores a dois hectares. Muito além do público ligado aos movimentos sociais, estimado em pouco mais de 100 mil famílias acampadas, essa é a demanda existente hoje no país onde menos de 1% dos estabelecimentos rurais concentram 45% de toda a área rural.

Uma das afirmações recorrentes daqueles que criticam o programa de reforma agrária brasileira é que teríamos o maior programa de distribuição de terras do mundo com 88 milhões de hectares já distribuídos em assentamentos da reforma agrária. Ignoram propositalmente que a maior parte está situada na Amazônia Legal em áreas que, apesar de formalmente estarem incorporadas pelo INCRA como áreas reformadas, não passam de reconhecimento e titulação de populações tradicionais que já viviam na região ou assentamento de famílias em terras públicas. Políticas fundamentais de inclusão de um segmento marginalizado do povo brasileiro, mas que não podem ser chamadas de reforma agrária.

Outro argumento recorrente dos críticos da reforma agrária é que ela não resolveu o problema da miséria no campo, mas sim o agronegócio. O primeiro ponto é que as famílias beneficiárias do Programa Nacional de Reforma Agrária estão hoje em melhor situação do que estariam se não fossem assentadas.

Os próprios dados da auditoria do TCU que tiveram ampla repercussão ao colocar sob suspeita quase 500 mil beneficiários do INCRA, se analisados com cuidado, indicam um sucesso da política pública executada pela autarquia ao longo dos seus pouco mais de 46 anos.

Em realidade, menos de 10% dos beneficiários estavam em situação de possível irregularidade. Os demais passaram a se enquadrar em critérios que os tornariam inelegíveis atualmente para o programa justamente devido ao sucesso deste: são pessoas que regularmente assentadas vieram a tornar-se servidores públicos, passaram exercer função pública (como mandatos eletivos ou cargos em administrações públicas municipais, estaduais ou mesmo federal), viraram proprietários, quotistas ou acionistas de empresa ou quotistas de cooperativas, ou, ainda, passaram a apresentar sinais exteriores de riqueza.

Ainda assim, os casos em que os assentamentos rurais possam não ter sido bem-sucedidos nos remetem ao que já levantava Caio Prado Júnior na década de 1960. O grande intelectual brasileiro nos lembrava que as manchas de solo de pior qualidade são aquelas que acabam ficando na mão dos pequenos e médios proprietários e que a desapropriação apenas das grandes propriedades improdutivas perpetuaria este cenário.

De certa forma, a discussão sobre a função social da propriedade só tem retrocedido nos últimos 30 anos. Até a Constituição de 1988 era possível a desapropriação do latifúndio por extensão, após sua promulgação, com o artigo 185, a propriedade produtiva passou a ser insuscetível de desapropriação para fins de reforma agrária.

O artigo 186 menciona especificamente que a função social da propriedade é cumprida por meio de: aproveitamento racional e adequado; utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; observância das disposições que regulam as relações de trabalho; e da exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. Entretanto, a contradição com o artigo 185 faz com que praticamente apenas as propriedades improdutivas sejam destinadas à reforma agrária. Fica desta forma travado o debate sobre desapropriações de terras que não cumpram sua função social sob os aspectos ambientais, trabalhistas e de bem-estar.

Apesar de aprovada a emenda constitucional que determina a expropriação de terras flagradas com trabalho escravo, o Congresso Nacional, hegemonizado pela bancada ruralista, não permitiu o avanço do tema com sua regulamentação por lei específica. Ou seja, a degradação ambiental, os recorrentes débitos trabalhistas ou condições de trabalho em completo desacordo com o bem-estar do trabalhador não ensejam a desapropriação-sanção.

Até mesmo a questão da produtividade continua engessada no tempo. Apesar de todo avanços do agronegócio, com sua propalada eficiência e todo o progresso técnico ocorrido nos últimos 40 anos, os ruralistas não aceitam a revisão dos índices de produtividade baseados no censo agropecuário de 1975.

Outro ponto que sequer entra no debate das desapropriações, apesar de relacionado tanto com a questão ambiental quanto com o bem-estar dos trabalhadores, é o debate do uso de agrotóxicos. O Brasil hoje é o maior consumidor de produtos agrotóxicos do mundo, provocando danos à saúde (dos trabalhadores e dos consumidores) e ao meio ambiente. Para se ter uma ideia da dimensão do problema, os custos externos do uso de agrotóxicos num país de área agrícola reduzida como o Reino Unido chegam a ₤ 2,34 bilhões (aproximadamente R$ 9 bilhões), imagine no Brasil.

Enquanto isso, os latifundiários seguem como um dos principais devedores da União. Temos mais de 4 mil pessoas físicas e jurídicas proprietárias de terras com dívidas acima de R$ 50 milhões. Entre os 50 maiores devedores, apenas pelo nome da pessoa jurídica, encontramos pelo menos 11 ligados ao setor agropecuário, todos com dívida individual superior a R$ 1,48 bilhão.

Nesta situação, ainda temos uma diminuição sistemática do orçamento do INCRA desde o primeiro governo Dilma, chegando ao seu piso histórico em 2016. O golpe traz ainda como novidade uma mudança de atuação da autarquia com inflexão para uma prioridade da titulação (uma política importante, mas que não é reforma agrária) das áreas reformadas em detrimento da obtenção de novas áreas. A Medida Provisória 759/2016 também trouxe a possibilidade da regularização da reconcentração fundiária ocorrida irregularmente até dezembro de 2014 em assentamentos do INCRA.

De nada vai adiantar o pensamento desejoso do agronegócio brasileiro de que enterremos a reforma agrária. Esta pauta continuará na ordem do dia até porque não há país no mundo que tenha se desenvolvido sem uma mudança radical na sua estrutura fundiária. Resta saber se será na lei ou na marra.