Prefeitura retira páginas de livros didáticos por questões religiosas

O prefeito e os vereadores decidiram se comportar como os fanáticos liderados por Girolamo Savonarola, o frade dominicano da era renascentista, que sob o pretexto de proteger a moral e o bons costumes da família tradicional, destruíam livros com qualquer conteúdo não aprovado pelos censores.

Por Luciana Oliveira*, em seu blog

Conceito de família MEC - Livro didático MEC

Aconteceu em Ariquemes, município distante pouco mais de 200 quilômetros da capital de Rondônia. 

Entre Girolamo e o prefeito Thiago Flores (PMDB) se passaram mais de 500 anos.

Indiferentes ao avanço ocorrido na maioria das sociedades, o prefeito decidiu junto à Câmara de Vereadores que todas as páginas de livros didáticos produzidos pelo Ministério da Educação (MEC), que tratem da diversidade sexual, casamento homossexual ou uso de preservativos devem ser rasgadas.

Eles criaram até uma comissão para fiscalizar os livros e promover a destruição das páginas.

Um dos vereadores que pediram ao prefeito o recolhimento dos livros, o tucano Amalec da Costa, quem colocou lenha na nova Fogueira das Vaidades, declarou que ” estes assuntos devem ser abordados pelos pais e não nas salas de aulas, principalmente, por lidar com crianças”.

Desde agosto de 2016 que os alunos de Ariquemes estudam sem livros e com o início do ano letivo, já que a prefeitura não tem poder de produzir o material didático, resolveu suprimir o que acha inconveniente.

Para o MEC, “A discussão sobre a inclusão da temática da sexualidade no currículo das escolas de primeiro e segundo graus tem se intensificado a partir da década de 70, por ser considerada importante na formação global do indivíduo. Com diferentes enfoques e ênfases há registros de discussões e de trabalhos em escolas desde a década de 20. A retomada contemporânea dessa questão deu-se juntamente com os movimentos sociais que se propunham, com a abertura política, a repensar sobre o papel da escola e dos conteúdos por ela trabalhados.”

Só que a pressão de bancadas religiosas, sobretudo as formadas por evangélicos, tem estimulado estados e municípios a não admitirem em seus planos de educação a utilização de livros que tratam a identidade de gênero, diversidade e orientação sexual, uma discussão que promove a igualdade, o respeito e liberdade entre os sexos.

Ao contrário do que alegam como perigo nas escolas, os fanáticos religiosos sim, querem a manutenção forçada de um modelo familiar ultrapassado que ignora a necessidade de debate para construção de uma sociedade mais justa, mais humana.

“Não falar sobre gênero é não falar sobre pessoas cuja existência e dignidade estão em risco por causa de gênero. Não é natural que estejamos em risco por causa de gênero. É cultural. Não é aceitável que mulheres não femininas, que mulheres trans, que homens trans e que mulheres lésbicas estejam em risco porque suas existências não se adequam um ideário de feminino”, destacou Joanna Burigo, fundadora da Casa da Mãe Joanna, projeto de comunicação e educação sobre gênero.

O deputado Jean Wyllys (Psol-RJ), usou as redes sociais para condenar a atitude do prefeito e vereadores de Ariquemes. “Estamos voltando para a época da inquisição? Toda e qualquer página de um livro que tenha o poder de dar liberdade e de formar cidadãos críticos e com pensamento serão arrancados? Quanto tempo até que recomecem a acender as fogueiras?

A resposta de Thiago Flores veio em tom de escárnio:

Segundo o prefeito, ‘a maioria’ da população de Ariquemes quer os filhos compreendendo família e sociedade conforme o modelo que chamam de ‘tradicional’.

É um prefeito babaca que faz tipo com a Bíblia em fotos no gabinete e uma sociedade igualmente babaca, ignorante conduzida por ignorantes.

É curioso, porque o município localizado no Vale do Jamari está entre os mais violentos do país e, pasme, tem também alto de índice de atropelamentos na faixa de pedestre.

É uma cidade que se arreganhou a políticos corruptos tradicionais que deixaram como exemplo à futuras gerações várias denúncias por fraudes em licitações, corrupção eleitoral e organização criminosa.

Ariquemes não tem sequer um IML adequado pra atender seus mortos. Os corpos eram tratados precariamente numa varanda e o último médico legista pediu pra sair, obrigando a transferência de autópsias para a capital, Porto Velho.

É ou não um contraste patético com os argumentos da intifada moralista liderada pelo prefeito e vereadores?

Os que se portam como heróis da fé, vigias da moral e bons costumes, destruidores de livros e consciências, deveriam provar pureza sem nenhum processo de investigação.

À quem iludiu o povo com falso moralismo e privilegiadas visões divinas no século XV, a pena foi o enforcamento.

Aos que propõem o renascimento da escuridão intelectual, que no mínimo sejam condenados à desmoralização, impopularidade e à aposentadoria política nas próximas eleições.