Abandonado no campo de centeio

Não é um livro, é uma metralhadora. Essa foi sempre a sensação irônica que me passou O apanhador no campo de centeio, romance do silencioso J. D. Salinger. É verdade: o autor tornava-se cada dia mais austero embora seu livro espalhasse balas e petardos por todos os lados.

Por Raimundo Carrero

J. D. Salinger. - Divulgação

Estava nas mãos do matador de John Lennon, Mark David Chapman, e do estudante John Hinckley Jr.,que atirou no presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan. Os criminosos pareciam tomados pela revolta de Holden Caulfield, que rondava o lago de Nova Iorque, procurando saber aonde iam os patos quando a água se transformava em gelo. O livro tornou-se um clássico e eternizou o nome do seu criador, que morreu envolto em mistérios porque não dava entrevista, não se deixava fotografar nem aceitava adaptações para o cinema, teatro, ou outro qualquer meio de divulgação. Se tivesse que apresentar um concerto de piano, o faria trancado num guarda-roupa.

Pensava em tudo isso enquanto lia o livro, pela primeira vez, sentado na cama do meu quarto do apartamento 801-C,do Mayflawer Residence Hall, observando, de quando em vez, o campus da Universidade de Iowa, meio-oeste dos Estados Unidos, onde participei do International Writting Program. Era como se esperasse ver Holden surgir a qualquer momento, cantando e gritando, para interromper a tranquilidade daquele local, onde havia muita grama e muitos esquilos numa calma manhã de outono com um sol frio. Um típico sol de outono, com breves rajadas de vento, em meio ao silêncio e à expectativa. Expectativa? Sim, porque sempre me disseram que no meio universitário havia loucos por todos os lados, dispostos a abrir fogo contra vítimas inocentes.

Decidira lê-lo para, quem sabe, começar a entender o jovem estudante norte-americano, que me parecia sempre muito rebelde e violento. Durante o tempo em que estive ali falava-se o tempo inteiro em estupros, por exemplo, e o retrato falado do bandido chegou a ser publicado pelos jornais da cidade. Dois ou três meses depois da volta ao Brasil, um estudante de Física matou um colega na escola que frequentava. Enquanto morei no Mayflawer houve um período de calma, pacífico, sem um só incidente. Nós, escritores estrangeiros – éramos mais de 30, da África, da Europa, sobretudo do Leste, e da América Latina – falávamos pouco sobre o assunto e tínhamos liberdade para andar na cidade ou viajar pelo país, sem qualquer susto. É óbvio, não é? Nem tanto. Para quem estava com o livro de Salinger na mão, tudo podia acontecer.

Ao tempo em que avançava na leitura passava por duas reações: a de um homem que não compreendia tanta revolta no coração de um quase menino, dentro de uma cultura que se dizia progressista e justa, enquanto me deliciava – alguém pode mesmo se deliciar com aquele jovem que brigava nos reformatórios e fugia pelas ruas geladas cuspindo fogo? – com a habilidade narrativa de Salinger. É possível alguém se deliciar de verdade? Que tormento é esse que constrange e alegra o coração humano? Fora dito, em algum lugar, que ele se tornara um budista atormentado com as visões da Segunda Guerra Mundial, onde atuara como espião. Isolara-se e era uma espécie de monge esquecido. Aliás, esquecido de si mesmo. Porque as balas continuavam a voar saídas dos revólveres dos seus leitores. Sobretudo dos mais desajustados.

E mais, não permitia ilustrações nos seus livros, desenhos ou fotos na capa, nem jamais admitia informações biográficas do autor nas orelhas ou quarta capa. Bastavam o seu nome e o nome do romance ou contos. No Brasil, os volumes geralmente têm capas brancas ou amarelas, sem resumos ou notícias. A biografia dele, escrita por Ian Hamilton, foi inteiramente mutilada, embora tenha informações preciosas, como a que se refere ao seu romance com Oona, filha do teatrólogo Eugene O’Neill. Oona casou-se com Charles Chaplin, enquanto Salinger era espião na Segunda Guerra Mundial. Seria possível suportar duas grandes decepções? Hamilton acrescenta que ela fora o grande amor de sua vida.

Sentindo-se abandonado, Salinger voltou a escrever determinado e silencioso, afastando-se cada vez mais das pessoas — nem sequer se fala em um único amigo —, até o final da década de 1960, quando deixou, definitivamente, de dar entrevistas, fugindo dos repórteres e fotógrafos. Chegou a se envolver com garotas — uma volta ao tempo perdido de Oona. Uma delas o abandonou, atirando para todos os lados. Segundo ela, ele só escrevia, não falava e era grosseiro. Inatingível, porém. Escrevia e não publicava; amava e ofendia. Ainda naquela mesma manhã de Iowa, procurei me convencer que O apanhador no campo de centeio não era senão a autobiografia imaginária e sonhada de Salinger.

Não me admiraria se ele surgisse ali, sem armas e balas, querendo saber aonde iam os patos quando o lago de Nova Iorque transformava-se em gelo. Seria capaz de acompanhá-lo na sua peregrinação.