O papel da África na nova rota da seda marítima

O objetivo do presente artigo é analisar o lugar da África na construção da Nova Rota da Seda Marítima. Este é justamente um dos vetores do ambicioso projeto chinês de integração da Ásia, Europa e África, lançado em 2013 sob título de Iniciativa OBOR (One Belt, One Road).

Por Diego Pautasso*

Cartaz de cúpula de Comércio China-África em Pequim

Na medida que os desafios da reconstrução nacional são superados, a China torna-se mais assertiva e dá forma à sua estratégia de inserção mundial. Nesse sentido, a Nova Rota da Seda agrega os objetivos centrais da diplomacia da China para o século XXI, reservando à África a condição de trampolim para que o projeto se torne global.

A Iniciativa OBOR (One Belt, One Road), também conhecida como Nova Rota da Seda, foi divulgada no segundo semestre de 2013 pelo presidente chinês Xi Jinping. Trata-se do mais ambicioso projeto chinês para alavancar sua inserção internacional. Como destaca Yiwei (2016), este projeto oferece alternativas ao estilo de globalização conduzida pelos EUA considerada por ele insustentável.

Indiferente às retóricas oficiais, é inquestionável que esta iniciativa chinesa tem potencial para reordenar a Eurásia e a configuração de forças do sistema internacional. Apesar das contradições que separam discurso das práticas e as intenções das realidades, também parece plausível sugerir que a estratégia de inserção da China difere daquela adotada pelos EUA. Além de buscar lançar luzes sobre estas problemáticas de fundo, o presente artigo pretende compreender como a diplomacia chinesa tem buscado articular a Iniciativa OBOR à sua política africana. Em suma, trata-se também de compreender como o renascimento da Ásia, tendo a China em seu epicentro, está a influenciar a transição sistêmica (Arrighi 2008, 17).

Para tanto, na primeira seção do artigo apontamos alguns elementos centrais da inserção internacional chinesa, progressivamente mais assertiva. Na segunda, explicamos as características da Nova Rota da Seda, bem como as capacidades e os objetivos que permeiam sua implantação. Terceiro, retomamos alguns aspectos importantes da política africana da China para compreender, por fim, como a África enquadra-se na dimensão marítima da Nova Rota da Seda.

China: da reconstrução nacional à assertividade 

A Nova China surgida da revolução de 1949 lançou as bases para um multifacetado e sinuoso processo de reconstrução nacional. A primeira geração de dirigentes liderada por Mao Tsé-tung tornou o país independente, retomou a integração territorial, lançou os alicerces da indústria de base e da infraestrutura física (transportes, comunicação e energia). A segunda geração, tendo à frente Deng Xiaoping, lançou a política de Reforma e Abertura em meados dos anos 1970, retomando o processo acelerado de desenvolvimento, internalizando tecnologia, diminuído o atraso em relação aos países desenvolvidos e criando novos padrões institucionais para o país. A terceira geração, sob a coordenação de Jiang Zemin (1993-2003), teve o desafio de resistir à conjuntura decorrente do colapso do campo soviético e ainda dar continuidade e aprofundar tais políticas iniciadas por Deng.

A partir do século XXI com a quarta geração de Hu Jintao (2003-13) e a quinta de Xi Jinping (2013-…), a inserção internacional chinesa ganhou novos contornos. Como destaca Visentini (2011, 131), se a consolidação da Nova China representou a recuperação de sua soberania e o lançamento das bases do desenvolvimento nacional, a Novíssima China pós-Reformas começa a transformar o próprio sistema mundial. Os desafios da China são complexos, pois o país depara-se com as contradições do mundo Pós-Guerra Fria e o envelhecimento do capitalismo contemporâneo em seus centros históricos.

Com o fortalecimento chinês, o país passou a exercer maior protagonismo junto às organizações internacionais. O ingresso na Organização Mundial do Comércio em 2001 e o maior peso junto ao FMI são ilustrativos. Da mesma forma, tem sido notável a liderança chinesa dos processos de integração regionais. Assim, como destaca Zhao (2013), a diplomacia chinesa ficou mais assertiva, deixando de lado a política externa de baixo perfil de Deng, sobretudo em temas cruciais dos seus interesses nacionais, como bem ilustra a presença na África e o envolvimento securitário no Mar do Sul da China. A China tem criado condições objetivas e subjetivas para desenvolver uma diplomacia multilateral ativa, deixando de ser um simples participante para ser protagonista e assumir grandes responsabilidades (Tianquan 2012, 182).

Nessa direção, a assertividade e o ativismo no espaço regional é precondição para sua consolidação como potência mundial. Daí a importância de conduzir e liderar os processos de integração regionais, direcionados tanto para o Pacífico (ASEAN Plus Three e Regional Comprehensive Economic Partnership também chamado de ASEAN+6) e para a Eurásia (Organização para a Cooperação de Xangai). Com efeito, a Nova Rota da Seda Continental e Marítima (One Belt, One Road) lançada pelo governo chinês visa a dar base física e argumento político para integrar toda a Eurásia. Ou seja, se fortalecem os argumentos a favor de que a China está reconstituindo um sistema sinocêntrico (Pautasso 2011).

Assim, é nítido que a China tem buscado lançar discursos voltados a legitimar sua ascensão. Primeiro, surgiu o conceito de Ascensão Pacífica, cunhado por um proeminente membro do Partido Comunista da China, Zheng Bijian, em 2002. Foi cunhado também como resposta aos recorrentes argumentos de ‘ameaça chinesa’ ou ‘colapso da China’. O conceito foi rejeitado, entre outras razões, porque provocava desconfiança nos países vizinhos em razão da noção de ‘ascensão’. De acordo com Tianquan (2012, 188), o Relatório do 17° Congresso do Partido Comunista Chinês em 2007 adotou a ideia de Desenvolvimento Pacífico e Mundo Harmonioso.

Já em 2004, um britânico, Joshua Ramo, passou a falar no Consenso de Pequim. Com ele, a China tem apresentado um caminho alternativo baseado tanto no reconhecimento das necessidades locais do desenvolvimento de cada país, quanto no reconhecimento do multilateralismo e na cooperação como forma de construir uma nova ordem mundial (Arrighi 2008, 383). Embora não tenha sido cunhado pela elite chinesa, o fato é que o modelo chinês, com forte atuação do Estado no desenvolvimento e baseado nos históricos Cinco Princípios de Coexistência Pacífica (1955), é percebido como diferente – e até divergente – da supremacia neoliberal consagrada no Consenso de Washington e do intervencionismo dos EUA.

Recentemente, a elite chinesa tem enfatizado a ideia de Sonho Chinês. Este é concebido como o rejuvenescimento do país, a revitalização e a renovação da sua civilização, para promover a transformação da civilização humana, e materializar o desenvolvimento. O sonho chinês está entrelaçado à ‘agenda dos dois centenários’ (criação do Partido Comunista Chinês em 2021 e da proclamação da República Popular da China em 2049) que determinam os horizontes da construção um país e de uma sociedade modestamente confortáveis.

Está claro, pois, que a China está buscando conceitos e formatos capazes de dar identidade à inserção internacional do país. Reagindo a conceitos como os de “ameaça chinesa” e proporcionando alternativas aos padrões de governança liderados pelos EUA e seus aliados europeus. Não se trata, contudo, de uma disputa de conceitos; a trajetória da China tem estado em contraste com a do Ocidente. Como sublinha Losurdo (2016), na China, o Estado de Bem-Estar Social está em construção, com os sobressaltos e desafios de um país continental e de mais de 1,3 bilhão de habitantes, com ampla mobilidade social e ampliação da classe média, além do recuo das desigualdades regionais. No Ocidente, ao contrário, os direitos sociais estão em vias de desmantelamento, enquanto as polarizações social e regional crescem. Assim, o desenvolvimento é um imperativo para a legitimidade do regime, para a soberania nacional e para a inserção internacional autônoma do país asiático (Losurdo 2016, 343).

A política chinesa da Nova Rota da Seda

Depois de apresentada por Xi Jinping em 2013, a Nova Rota da Seda ganhou um documento elaborado pelos Ministérios dos Negócios Estrangeiros e do Comércio e pela Comissão Nacional de Desenvolvimento e Reforma cujo título era Vision and Actions on Jointly Building Silk Road Economic Belt and 21st-Century Maritime Silk Road (1). O documento enfatiza que há mais de dois milênios atrás as pessoas integraram civilizações da Ásia, Europa e África através da Rota da Seda. Segundo o governo chinês, a Nova Rota da Seda busca os seguintes elementos da cooperação: a coordenação das políticas, a conectividade de instalações, o comércio desimpedido, a integração financeira e o intercâmbio de pessoas. Para tanto, os objetivos são alinhar e coordenar as estratégias de desenvolvimento desses países; criar demandas e oportunidades de emprego; promover confiança, paz e prosperidade. O plano deixa claro a disposição do governo chinês em arcar com mais responsabilidades e obrigações dentro das suas possibilidades e de promover os Cinco Princípios de Coexistência Pacífica. Segundo o documento, a Nova Rota subdivide-se no Cinturão Econômico ligando a China-Ásia Central-Rússia-Europa (Báltico); e a Rota Marítima, projetada para ir da costa da China para a Europa através do Mar do Sul da China e do Oceano Índico em uma rota, e da costa da China através do Mar do Sul da China para o Pacífico Sul na outra

O projeto da Nova Rota da Seda está estruturado em 6 corredores: Corredor Econômico China-Mongólia-Rússia, Nova Ponte de Terra da Eurásia, Corredor Econômico China-Ásia Central, Corredor Econômico China-Península Indochinesa e Corredor Econômico Marítimo. Esse processo de integração envolveria cerca de 65 países e 63% da população mundial de três continentes (Ásia, Europa e África). A ideia é o rejuvenescimento e a integração da Eurásia, a região que Mackinder havia chamado de World Island, envolvendo diversas civilizações (chinesa, árabe, persa, indiana, bem como as diversas religiões, dos islâmicos aos cristãos) e sem replicar o modelo de expansão e colonização adotado pelas potências ocidentais (Yiwei 2016, 187-188).

A estratégia chinesa da Nova Rota da Seda parece bem concebida pois se baseia em explorar as principais capacidades à disposição do país asiático. A primeira delas é capacidade produtiva chinesa, o que inclui uma gigantesca indústria de base: a produção de aço é ilustrativa, pois a China terminou 2014 com uma produção de quase 823 milhões de toneladas, contra 110,7 do Japão e 88,3 dos EUA (2). A outra é sua enorme infraestrutura portuária, com 7 dos 10 maiores do mundo (3), e nada menos que 21 das cem maiores construtoras do mundo (sendo ainda 8 japonesas e 7 estadunidenses, para ilustrar) (4). Por fim, a China tem mobilizado sua capacidade financeira para impulsionar a integração concebida pela Nova Rota da Seda. Ressalte-se a criação do Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura, o Novo Banco de Desenvolvimento do BRICS, o estabelecimento de instituição financeira da Organização para Cooperação de Xangai, o Fundo Rota da Seda e dos bancos chineses de fomento. Ou seja, tal capacidade financeira serve tanto para alavancar sua inserção internacional quanto para pressionar a emergência de uma nova arquitetura financeira e geoeconômica em âmbito global. Dessa forma, a Nova Rota da Seda articula três objetivos fundamentais do governo da China, como sua capacidade econômica, suas estratégias de política externa e suas reservas financeiras. Esses três objetivos se entrelaçam com a conformação de uma nova arquitetura financeira e geoeconômica. Primeiro, o governo chinês vem sinalizando, desde a crise de 2008, a necessidade de superar as vulnerabilidades de uma economia global ancorada em uma moeda nacional (dólar) e pressionando para que sua divisa fizesse parte da cesta de moedas do FMI – como ocorreu a partir de 2016, quando o yuan passou a representar 10,92% dessa cesta atrás do dólar (41,7%) e do euro (30,9%) e à frente da libra (8,1%) e iene (8,3%) (5). Segundo, com a iniciativa do grupo BRICS que redundou na criação do Novo Banco de Desenvolvimento e do Acordo Contingente de Reservas na sua 6ª Cúpula em Fortaleza, em julho de 2014 (6). Terceiro, com a ampliação do papel chinês como financiador de obras no mundo através do Banco de Desenvolvimento da China (CDB) e do Eximbank, criados em 1994 como bancos estatais de fomento. Quarto, o crescimento dos investimentos externos diretos (IED) e os contratos da China (7) – o que explica a vertiginosa ampliação do número de empresas chinesas na lista das 500 maiores da Fortune para 106 empresas em 2015 (8). Quinto, o governo criou um sistema internacional de pagamento (China International Payment System-CIPS) em outubro de 2015 (9) – alternativo ao tradicional domínio ocidental do SWIFT (Society for the Worldwide Interbank Financial Telecommunication). Assim, o governo chinês trabalha para a “desdolarização” global e a internacionalização da sua moeda, o yuan, buscando ampliar sua autonomia do mercado financeiro centrado nos EUA/ União Europeia. Em suma, a dialética entre poder e capital tem estruturado o sistema internacional contemporâneo e, portanto, vale para compreender como a hegemonia dos EUA foi constituída a partir de Bretton Woods, mas também para refletir sobre a sinalização de importantes mudanças que vêm ocorrendo no plano internacional (Pautasso 2015).

E o que poderia fazer a Iniciativa OBOR viável? Primeiro, não se trata de complexos arranjos institucionais de integração que pressupõe grandes concessões e consensos. Segundo, se viabiliza a partir de um interesse objetivo e quase irrecusável dos países por infraestrutura. Terceiro, viabilizada a obra, a partir das capacidades à disposição da China (indústria de base, engenharia, financiamento, etc.), enraízam-se os fluxos comerciais que permite o exercício do poder gravitacional de sua economia. Por fim, o poder econômico cria condições para o exercício de um poder político e, com efeito, os meios para deslocar progressivamente a supremacia dos EUA ao integrar a Eurásia.

A África na política externa chinesa

O colapso do socialismo soviético teve um impacto muito maior para as relações internacionais e sociedade do que geralmente é reconhecido. A ofensiva neoliberal e o expansionismo dos EUA através de uma política externa unilateralista e intervencionista talvez sejam suas facetas mais aparentes. Contudo, seus desdobramentos possuem dimensões múltiplas, cujos desdobramentos ainda hoje têm se feito sentir. Para o continente africano e para a China não têm sido muito diferentes.

Na África, mesmo favorecendo o fim dos conflitos convencionais apoiados pelas superpotências (EUA e URSS), o fim da Guerra Fria fez sucumbirem ou mudarem suas orientações políticas os governos progressistas surgidos das lutas de libertação nacionais. Os ajustes neoliberais desarticularam os embrionários Estados africanos, proporcionando regressões econômicas e institucionais. O resultado foi uma certa marginalização do continente das relações internacionais, enquanto prosperavam conflitos identitários, miséria e epidemias (Visentini 2010, 155).

Para a China, a repressão na Praça da Paz Celestial garantiu a manutenção do regime e das reformas iniciadas por Deng, enquanto os demais países socialistas se desintegravam e adentravam numa década de regressão ao adotarem a terapia do choque neoliberal. Ainda assim, o país se viu diante da tentativa de isolamento promovida pelo Ocidente. Nesse sentido, a aproximação com a África foi parte crucial da estratégia chinesa não só para romper o cerco, como para universalizar sua política externa e ampliar a sinergia econômica que vinha alimentando seu dinamismo econômico.

A partir de meados dos anos 1990, se aprofunda a sinergia entre China e demais países africanos. O comércio da China com o continente africano ultrapassou 174 bilhões de dólares em 2014. A África é destino de cerca de 4,2% dos produtos exportados e origem de 4,8% das importações da China (10). Em 2009, o comércio da China com a África, que havia partido de módicos 1,3 bilhão em 1992, já havia superado o volume transacionado pelos EUA e o continente. O crescimento do comércio é ilustrativo, entretanto, de uma interação multifacetada que se institucionalizou com a criação do Fórum de Cooperação China-África.

O FOCAC foi formalmente estabelecido em 2000 entre China e 50 estados africanos. A Conferência Ministerial é realizada a cada três anos, buscando o aprofundamento da cooperação China-África através de vários outros fóruns ligados à agricultura, ciência e tecnologia, direito, finanças, cultura, grupos de reflexão, à juventude, às ONGs, às mulheres, à mídia e governança local, etc. Nesse período, diversos documentos têm sido assinados, entre eles o Plano de Ação de Addis Ababa (2004-2006), cujo objetivo foi aumentar a assistência para os países africanos e dar o tratamento de tarifa zero aos produtos exportados para a China a partir de alguns dos países menos desenvolvidos da África. Cada nova cúpula desenvolveu um novo Plano de Ação a ser implementado no período subsequente (Plano de Ação para a Cooperação-Pequim China-África 2007-2009; Plano de Ação el-Sheikh Sharm Sharm el-Sheikh 2010-2012; Plano de Ação de Pequim de Cooperação China-África 2013-2015). Ademais, o governo chinês tem estendido linhas de crédito bilionárias para diversos setores da economia africana (11). Em outras palavras, o FOCAC fortalece a relação bilateral da China com os países africanos, garantindo recursos naturais, novos mercados e para oportunidades de investimentos, enquanto granjeia comprometimento dos países africanos junto à China nas Organizações Internacionais (Lopes, Daniele e Javier 2013).

Esta institucionalização das relações da China com a África impulsiona diversas outras iniciativas. Primeiro, ampliou a ajuda internacional da China para a África, com capacitação de profissionais, cooperação técnica, ajuda humanitária, etc. Segundo, o desenvolvimento infraestrutural do continente tem progredido substancialmente, com a construção de prédios públicos, usinas de produção de energia, estradas, escolas e centros de desenvolvimento agrícola, hospitais, entre outros. Terceiro, os investimentos externos diretos da China têm impulsionado Zonas Econômicas Especiais e Zonas de Livre Comércio em diversos países africanos, compensando a perda de empregos decorrente das exportações chinesas. Como destaca Visentini (2014), estas são, marcadamente, características da Cooperação Sul-Sul e estão contribuindo para criar um espaço geopolítico meridional baseado no espírito da Conferência de Bandung. Ou seja, é nesta Conferência, no Movimento dos Não-Alinhados e no G-77 que se lançam as bases das relações Sul-Sul e de sua organização em torno de princípios, valores e ideias comuns (Pereira e Medeiros 2015).

É, evidente, portanto, que a política chinesa para a África é baseada no seu auto interesse e em suas considerações políticas e estratégicas. Isso difere bastante do discurso ocidental voltado a caracterizar como ‘imperialismo chinês’. São inegáveis que os ganhos e as capacidades são assimétricos; mas inegável também que a relação da China com os países africanos não reedita o domínio territorial, o intervencionismo militar, a ingerência sobre a gestão econômica, o etnocentrismo acerca das organizações políticas, a imposição de padrões culturais, etc. que caracterizaram o imperialismo do século XIX e XX.

A África e a Nova Rota da Seda Marítima

A China está entrelaçando, de forma persuasiva, retórica e capacidades para levar adiante a Iniciativa OBOR. Segundo Yiwei (2016, 15- 60), a Nova Rota da Seda Marítima rejeita o caminho anteriormente adotado pelas potências ocidentais, baseado na expansão, conflito e colonização, em favor de um novo tipo de civilização marítima caracterizada pela integração dos homens e dos mares, com coexistência harmoniosa e desenvolvimento sustentável.

Para tanto, o objetivo da China é estabelecer ligações entre os principais mercados do Oriente Médio, Ásia Central e África. A Nova Rota da Seda Marítima visa a consolidar uma infraestrutura portuária para fortalecer corredores comerciais e energéticos do Mar do Sul da China, do Golfo Pérsico ao Mar Vermelho, englobando as penínsulas da Indochina, do Indostão, da Arábia e do Chifre da África. É uma forma de aumentar a presença chinesa diante dos checkpoints existentes na região, como são os casos do estreito Bab el-Mandeb entre o Mar Vermelho e o Índico, do estreito de Ormuz entre Golfo Pérsico e o Índico e o estreito de Málaca entre o Índico com o Mar do Sul da China.

No caso do continente africano, as regiões do Nordeste e Chifre da África são o outro extremo da ligação da via marítima da Iniciativa OBOR. A posição de países como Egito, Djibuti e Quênia revela que o Chifre da África é o outro extremo da Nova Rota da Seda Marítima. Essa região, por sua vez, permite potencializar a política africana da China (Figura 2). Diga-se, aliás, que muito da experiência chinesa por detrás da Nova Rota da Seda, baseada na construção de infraestrutura como forma de impulsionar novos fluxos e novas parcerias, ganhou seus contornos mais robustos através das relações sino-africanas.

A África e a Rota da Seda Marítima / Fonte: Mercator Institute for China Studies
A África e a Rota da Seda Marítima / Fonte: Mercator Institute for China Studies
Sendo assim, o Egito é particularmente crucial na Nova Rota da Seda Marítima, na medida em que o Canal de Suez representa o principal ponto de trânsito entre o Oceano Índico e o Mar Mediterrâneo. Quando de sua visita ao país africano em janeiro de 2016, Xi Jinping incentivou expressamente as empresas chinesas a participarem em grandes projetos no país, incluindo o desenvolvimento do Novo Canal de Suez e a construção de uma nova capital administrativa fora do Cairo (12).

Não muito diferente é o caso do Djibuti, estrategicamente localizado no cruzamento do Mar Vermelho e do Golfo de Áden. Apesar de pequeno, o país africano também tem importância para a Nova Rota da Seda Marítima, inclusive para abrigar a primeira base naval ultramarina da China – onde os EUA já têm o Comando Africano do Pentágono (AFRICOM) utilizado para operações com drones da CIA (Agência Central de Inteligência dos EUA). O objetivo alegado pelo governo chinês é de tratar-se de instalações de apoio logístico para os esforços de combate à pirataria, de assistência humanitária e de manutenção da paz. Embora a China resista a aceitar a designação de ‘base militar’, é nítido o esforço do país asiático para construir uma Marinha capaz de operar em águas oceânicas com alcance global – com apoio de seu primeiro porta-aviões, batizado de “Liaoning” (13).

Da mesma forma, no Quênia, o governo da China firmou acordo para a construção do Porto de Lamu. O objetivo é integrar com o Sudão do Sul com a Etiópia através de outras obras de infraestruturas, incluindo rodovias, ferrovias, aeroportos, refinarias de petróleo e cabos de fibra ótica. Assim, a emergente indústria de petróleo e gás do Leste da África deve estar integrada ao dinâmico mercado da Ásia (14). Essa região está, por sua vez, intimamente ligada também aos interesses chineses no Sudão.

Com efeito, pode-se concluir que a Iniciativa OBOR busca amarrar um conjunto grande de objetivos do governo chinês – já desenvolvidos em outros estudos (Pautasso 2012). Primeiro, permite, em âmbito doméstico, aprofundar a integração territorial nacional com a formação de uma economia continental, dado que o leste do país desenvolve o “braço” marítimo da Rota, o Oeste desenvolve o “braço” continental, conectando mais de 10 províncias chinesas. Segundo, aprofunda a integração regional e fortalece as condições para a recriação do sistema sinocêntrico. Terceiro, a universalização da política externa chinesa, com a forte presença na África, torna-se um campo de prova das disputas sino-americanas, reveladoras dos modelos de desenvolvimento em disputa na atualidade.

Em suma, a Nova Rota da Seda é nitidamente uma estratégia chinesa para i) integrar a Eurásia, ii) consolidar um novo sistema sinocêntrico e iii) criar as condições para a China se firmar como potência mundial. É a um só tempo uma estratégia e um discurso para legitimar sua ascensão em parâmetros distintos daqueles enunciados pelos EUA no pós-Guerra Fria.

Considerações finais

A história (e a das relações internacionais, por óbvio) é um processo contraditório. E o entendimento e a leitura de suas contradições, das forças em disputas, é ofuscado pelo envolvimento com a contemporaneidade. Durante o início do século XXI, ensaiou-se o renascimento da África, o fortalecimento de governos de matriz popular na América Latina e a projeção internacional dos emergentes – depois reunidos sob o acrônimo BRICS. Ensaiavam-se movimentos de cooperação Sul-Sul e a retomada de processos iniciados com a descolonização da periferia e com o surgimento do Terceiro Mundo e de seus movimentos sob o signo da Conferência de Bandung. A crise de 2008, por sua vez, reativou as forças neoconservadoras, as mesmas já fortalecidas com o colapso da URSS e com o advento do neoliberalismo, reunidos sob a liderança dos EUA.

Nesse sentido, a experiência de modernização da China, a construção de processos de integração e desenvolvimento articulados sob a iniciativa da Nova Rota da Seda representam, sem dúvida, mais do que um projeto, mas uma das forças em jogo nessa conjuntura de encruzilhada das relações internacionais. Se o ambicioso projeto de integração da Ásia, Europa e África proporcionar uma alternativa aos polos centrais do capitalismo e ao Consenso de Washington, a China poderá exercer um protagonismo fundamental para o século XXI. E nesse sentido a África, paradoxalmente, assume um papel decisivo: de continente marginalizado, pode converter-se na nova fronteira das experiências de desenvolvimento e cooperação Sul-Sul. A inclusão do continente africano na Nova Rota da Seda também representa a oportunidade de dar forma global a esta iniciativa e, por sua vez, ao próprio lugar da China na nova configuração de poder global.

* Doutor e mestre em Ciência Política, professor de Relações Internacionais da UNISINOS, autor do livro China e Rússia no Pós-Guerra Fria, editora Juruá, 2011. E-mail: dgpautasso@gmail.com