Paulo Kliass: Juros e juros

A liberdade oferecida aos bancos continua mantendo o Brasil na condição de líder mundial no quesito juros, com a maior taxa real do planeta.

Por Paulo Kliass*

Banco Central

A situação geral de nosso País continua indo de mal a pior. A crise econômica se entrelaça cada vez mais à crise econômica, com seus tentáculos atingindo também a dimensão social e institucional. A cada novo dia que passa, as imagens, as novidades e as rotinas repetidas retratam uma Nação que afunda a olhos vistos.

A recessão grave se impôs como uma realidade da dinâmica econômica, perpassando todos os setores de atividade e todas as regiões. O desemprego segue firme e forte, com o aumento expressivo no número de pedidos de falência de empresas por todos os cantos. A tragédia social começa a atingir também as finanças públicas de unidades importantes da federação, a exemplo do que ocorre de forma mais visível no Rio Grande do Sul e no Rio de Janeiro.

Os prefeitos eleitos em outubro último, e que tomaram posse há alguns dias atrás, também devem enfrentar enormes dificuldades para conduzir as políticas públicas nos mais de cinco mil municípios que compõem o território nacional. Os massacres nas unidades penitenciárias em Manaus e Boa Vista são a ponta do iceberg de um sistema prisional onde a ação do Estado foi completamente substituída pela direção das facções e grupos criminosos.

Queda da SELIC: convicção ou oportunismo?

Estes são apenas alguns aspectos do quadro mais geral provocado pela política do austericídio. Essa visão ultrapassada e conservadora do fenômeno econômico insistiu, resistiu e persistiu a se fazer dominante aqui por nossas terras. O País tem de sangrar com juros elevados, cortes nos gastos sociais e redução no ritmo da atividade econômica. Esse seria o (des)caminho para alcançar a solução da crise. Pouco importa se até mesmo organizações multilaterais vinculadas ao sistema financeiro como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial (BM) esboçam uma envergonhada autocrítica de suas receitas de ajuste macroeconômico ortodoxo, implementadas até bem pouco tempo atrás por todos os continentes. Os representantes da banca por aqui estão interessados apenas é no lucro imediato proporcionado pelos ganhos invejáveis na esfera do rame-rame financeiro. Que se dane o País e a maioria de sua população.

No entanto, pouco a pouco parece ter início uma espécie de desapontamento com as falsas promessas propagadas à época do golpeachment. Parcelas crescentes das próprias classes dominantes se dão conta de que a tarefa é muita mais complexa do que simplesmente rasgar a Constituição e afastar uma Presidenta que havia sido legitimamente eleita pela maioria da população. Setores das classes médias que apostavam seu descontentamento nesse mesmo enredo golpista e antidemocrático percebem que a corrupção continua envolvendo integrantes do governo Temer e a crise se aprofunda. Mas afinal, não haviam garantido que bastava tirar a Dilma do Palácio do Planalto para que a varinha das expectativas entrasse em ação com a missão de promover a tão esperada redenção tupiniquim?

Tendo em vista o mais completo fracasso que a via do retrocesso ortodoxo tem apresentado ao País, tudo indica que o governo Temer se veja na condição de promover alguma concessão no campo do doutrinarismo radicalizado do neoliberalismo de botequim. Essa é a única explicação plausível para a decisão mais recente do Comitê de Política Monetária (COPOM). Afinal, em sua primeira das oito reuniões previstas para 2017, o colegiado decidiu acelerar o ritmo de queda da taxa referencial de juros – a SELIC. Em deliberação que chegou a surpreender até mesmo a maior parte dos consultores da área financeira, os diretores do Banco Central reduziram a taxa oficial de 13,75% ao ano para 13%.

Em 2012 financismo foi contra.

Vale a observação que se trata da terceira diminuição consecutiva na taxa referencial. Em 19 de outubro de 2016, ela havia sido abaixada de 14,25% para 14%. Em 30 de novembro, houve nova queda de mesma intensidade para 13,75%. A última conjuntura de redução da taxa havia ocorrido entre 2011 e 2012, quando Dilma orientou os responsáveis da então equipe econômica a baixarem os juros oficiais e a promoverem também uma redução do “spread” cobrado pelos bancos nas operações de crédito. Ao longo de quase um ano, o COPOM baixou a taxa de 12,50% para 7,25%. Tal tentativa foi covardemente bombardeada pelo financismo e Presidenta não ousou enfrentar os adversários como deveria. O resultado de tal recuo todos conhecemos. O financismo avançou, continuou avançando e não recuou mais em sua voracidade parasitária.

No entanto, não há como se criticar a decisão do BC tomada na última quarta-feira, 10 de janeiro. A pergunta que não quer calar diz respeito às razões que teriam levado a ela. Afinal, o estrago provocado por essa política monetária criminosa sobre o conjunto da sociedade é flagrante. Isso todo mundo sabia e os comentaristas das páginas econômicas não poupavam elogios ao desastre anunciado. E agora, de repente, boa parte deles muda de opinião e se rende ao que antes era qualificado de bolivarianismo populista? Seria simplesmente uma concessão da ortodoxia cega que foi obrigada a aceitar algumas tinturas de pragmatismo, em razão das pressões políticas do “não dá prá continuar assim”? As possíveis respostas a tal dúvida serão mais bem conhecidas na sequência de medidas que deverão ser adotadas.

Como é amplamente sabido, apesar da importância da definição da SELIC em si mesma, sua contribuição para o rearranjo macroeconômico depende da redução da taxa de juros na ponta, nas operações realizadas junto aos bancos. É ali que se tornam conhecidos os custos efetivos para os tomadores de crédito e empréstimo. E nesse quesito o órgão regulador e fiscalizador do sistema financeiro continua fazendo cara de paisagem, atendendo exclusivamente aos interesses da banca. Por exemplo, nada de limitar o diferencial cobrado pelas instituições financeiras.

Continua a farra dos bancos!

Em termos objetivos, a redução da SELIC contribui positivamente para a redução dos encargos financeiros que o governo terá com a sua conta de juros. Isso é inegável. Esse valor continua mastodôntico, tendo acumulado o total de R$ 424 bilhões ao longo dos últimos 12 meses, de acordo com Nota oficial do BC, divulgada em 27 de dezembro passado. Assim, esse montante deverá ser um pouco menor para o período futuro, com menor peso relativo sobre o Orçamento da União. Mas de nada valerá tal alívio, uma vez que a aprovação da PEC do fim do mundo promete congelamento das despesas não financeiros do orçamento para os próximos 20 anos.

Além disso, a liberdade oferecida aos poucos e imensos bancos que dominam o mercado continua mantendo o Brasil na condição de líder mundial no quesito juros, com a maior taxa real do planeta. O único setor que continua a apresentar lucros bilionários em uma economia que se vê mergulhada em recessão por 2 anos é o sistema financeiro. O “spread” praticado por eles seria de envergonhar qualquer cidadão comum, empresário ou dirigente político. Relatório oficial do BC a esse respeito, mostra taxas de 482% nas operações de cartão de crédito para pessoas físicas ou de 339% no cheque especial para pessoas jurídicas. A média das taxas de juros para pessoas físicas era de 73% e de 30% para as empresas. Tudo isso enquanto o custo do dinheiro para os bancos emprestadores está na faixa de 13% ao ano. Uma loucura!

Assim, o anúncio do COPOM deve ser analisado com cautela. Afinal, há juros e juros. Caso o diretor do Banco Itaú, atualmente ocupando a presidência do BC, não promova uma redução significativa no custo do crédito, os efeitos da redução da SELIC no dia a dia das empresas e das famílias não serão sentidos. A travessia da pinguela continua sendo uma operação de alto risco, bastante temerária.

* Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.