A crise do Rio de Janeiro explicada de forma didática

“When you lose your self respect, you are done for.”
Fala do personagem principal do filme: “I, Daniel Blake” (2016)

A crise do Rio de Janeiro virou um jogo de xadrez político, quem achar que é só um problema técnico já tem um lado nessa disputa.

Por Bruno Sobral*

Servidores públicos protestam diante do edifício da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro

Chamo atenção que a "solução" que darão para ela afetará toda a política nacional daqui para frente, por isso, atenção: muito cuidado para aqueles que acharem que crise do Rio é problema de carioca e fluminense.

Segue o histórico e seus desfechos:

Fato 1: Pezão, governador do Estado do Rio de Janeiro, voltar de sua licença médica. Tão logo reassume o cargo renuncia a administrar conflitos que é o papel de um governador eleito e joga para a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) o abacaxi de ter que aprovar um projeto de ajuste fiscal que se revela um pacote de maldades inaceitáveis. Sem a menor capacidade de articulação política, único argumento é: não temos alternativas (o que irá repetir a partir de então).

Fato 2: Pacote de maldades não passa na Alerj diante de forte mobilização de servidores estaduais. Nesse momento, Henrique Meirelles (Ministro da Fazenda) avesso a acatar resultados democráticos contrários a sua vontade, já passa a exigir esse pacote para renegociar dívida do Rio em condições mais viáveis. Ou seja, diante da fraqueza do governo estadual, ele respalda e nacionaliza a imposição das maldades.

Fato 3: Pezão já aliado de Meirelles, vai a Brasília e tenta um acordo passando por cima da decisão desfavorável da Alerj. Tanto é assim que Pezão veta a parte do pacote aprovada na Alerj que reduziria seu salário e de seu secretário, e impediria "supersalários" para comissionados cedidos (acúmulo de renumerações que permite ultrapassar o teto do serviço público). Ou seja, se não tirou dinheiro dos servidores estaduais, ele não quer perder nada para si e seu secretariado.

Fato 4: Jogaram para a Câmara dos Deputados Federais o abacaxi. Mas também não passa na Câmara. Diante disso, mais um ato de força, Michel Temer veta o que foi votado e parte para ideia de negociar acordos bilaterais, ou seja, executivo federal com executivo estadual, caso a caso.

Fato 5: Meirelles para acentuar o "terrorismo financeiro" e manter Pezão em suas mãos, impõe sucessivos bloqueios na conta do governo do estado. Isso agrava ainda mais o quadro, deixando a maioria dos servidores estaduais sem um tostão em dezembro. Uma dívida mostrou ter mais valor que vidas na atual conjuntural federal.

Fato 6: Cármen Lúcia, ministra chefe do Supremo Tribunal Federal, intervém e desbloqueia as contas do Governo do Estado do Rio. Meirelles agora tem dois problemas: uma rebelião na Câmara dos Deputados Federais e não bater de frente com o STF. A dúvida seria como reagiria Pezão, aproveitaria as contradições na base governista federal e a interpretação jurídica que poderia ser politizada a favor do Rio?

Fato 7: Não, Pezão mantém-se aliado a Meirelles, não vê saída sem ser um bom aliado de quem deve. Diante dessa certeza, Meirelles executa sua jogada de mestre: vem até o Rio enquadrar mais uma vez Pezão e fechar questão a portas fechadas, o que não encontra nenhuma resistência, só apoiadores no executivo estadual.

Fato 8: Lançamento de um pacote de maldades requentado. Passando por cima das decisões anteriores das casas legislativas, levará primeiro ao STF para homologação (Cármen Lúcia assume a figura de avalista monocrática). Primeira vitória de Meirelles: superar qualquer risco de judicialização (afinal, qualquer maldade sempre gera milhares de ações judiciais, certo?).

Fato 9: Cármen Lúcia deve lavar as mãos, feliz que as duas partes chegaram a um "acordo", e diante disso, pacote será aprovado independente de uma votação no Congresso Nacional. Câmara tem poder para derrubar o veto de Temer a votação anterior, mas diante desse acordão, provável irá garantir a segunda vitória de Meirelles ao não questionar o teor autoritário da articulação sem anuência transparente dos representantes eleitos do povo.

Fato 10: Novamente projeto irá cair na Alerj para aprovação, mas em um quadro totalmente adverso como Meirelles desejava: chancelado pelos chefes dos três poderes federais. Como a Alerj vai se opor contra algo que a mídia ainda vai chamar de a grande "solução" consensual?

Atenção, sob o nome de "recuperação" se propõe na verdade algo que não recupera nada, mantém a economia do Rio de Janeiro em crise e apenas retira parte dos rendimentos dos servidores estaduais para aliviar a conta desse arranjo financeiro? Ou se seja, Pezão está negociando em salas fechadas com o dinheiro dos servidores sem os consultar!!!

Dois poréns e uma conclusão:

1) Porém não contam que ainda é forte a mobilização dos servidores estaduais, mesmo sendo acusados por parte da grande mídia de reduto de castas que defendem privilégios (algo curioso quando nem salários recebem). Um quadro de greves precisa ganhar mais força e terá um papel fundamental, repito, nesse momento, terá um papel fundamental. A pressão já mostrou efeito em dezembro e agora é ainda mais importante.

2) Porém a base do governo estadual também está em frangalhos na Alerj, nesse quadro não se consegue aprovar nada. Por exemplo, diferente do Rio Grande do Sul, o pacote aqui foi liquidado antes em dezembro. Mesmo com a força da figura de Jorge Picciani, presidente da Alerj por quase 12 anos não consecutivos, ele não se colocará no fogo para defender um governo estadual sem articulação política. Explorar as contradições dentro da Alerj é fundamental, deixando claro que está na hora de aliados de ocasião abandonarem esse navio furado para não se queimarem junto com Pezão e Dornelles (vice-governador que esteve a frente interinamente em boa parte de 2016).

3) Conclusão: o que é o único fator que permite Meirelles concluir seu xeque-mate e usar a "experiência da solução do Rio de Janeiro" para generalizar para o resto do país essa aposta draconiana? Reposta: a sustentação do frágil governo Pezão/Dornelles que tem como único respaldo o próprio Meirelles.

Tanto a mobilização dos servidores estaduais como nos bastidores da Alerj avança a possibilidade de sua derrubada por improbidade (alguém tem dúvida dos indícios de que não se cumpriu o orçamento previsto de 2016?). Em um jogo de xadrez, a vitória depende de você pensar duas ou mais jogadas na frente de seu adversário.

A única coisa que Meirelles não conta é com a queda de Pezão e Dornelles agora. Eles e seu secretariado tecnocrático são os únicos que ficaram fieis às demonstrações unilaterais de poder por Meirelles, mesmo quando Alerj, Câmara dos Deputados Federais e STF tomaram medidas contra.

A escolha se resume a: avançar de vez para a saída de Pezão e Dornelles por greves e pressão maior que nunca sobre a Alerj ou esperar que, passo a passo, Meirelles vá costurando seu xeque-mate. O que nós, cidadãos brasileiros, aceitaremos?

Isso não é radicalismo, é análise das forças em jogo. Essa solução você dificilmente verá alguém destacar em um grande jornal impresso ou televisivo que tiver como tese editorial dominante que servidores no geral são privilegiados. Contudo, essa solução é aquela que abre espaço para a construção negociada de um governo que sente com as classes sob risco financeiro e, no nível federal, traz definitivamente Câmara e STF para o lado dos vulneráveis e atingidos.

Essa impostura não é recuperação, isso só serve para humilhar ainda mais quem já foi desrespeitado nos últimos meses. Que a população seja esclarecida que não há solução humilhando aqueles que servem a ela. Só a conquista do respeito mútuo pode forjar laços que atravessam o território minado de crise e desigualdades.

E Pezão que vá junto com o Gustavo Barbosa trabalhar no Ministério da Fazenda ou peça uma carta de recomendação para o Meirelles. O ano começou, a luta é a mesma. E o momento mais importante é agora tanto para o Rio, como principalmente para o país.