Brasil se prepara para 2ª Conferência Nacional de Saúde das Mulheres

Com o tema “Saúde das Mulheres: Desafios para a Integralidade com Equidade”, a 2ª Conferência Nacional de Saúde das Mulheres recupera um processo de mobilização social que tem no centro a implementação da política nacional de atenção integral à saúde das mulheres.

Por Clarissa Peixoto, do Catarinas

Carmen Lucia Luiz - Foto: Clarissa Peixoto

Era março de 1986 e o movimento de mulheres ocupava a 8ª Conferência Nacional de Saúde com o lema “as mulheres adoecem pelo simples fatos de serem mulheres”. A agitação garantiu que se aprovasse a realização da 1ª Conferência de Saúde e Direitos das Mulheres, que aconteceria em outubro do mesmo ano. De lá para cá, muitos altos e baixos. Embora se tenha estabelecido diretrizes para as políticas de saúde das mulheres, o passo seguinte se desdobrou numa lacuna de diálogo social sobre o tema, entre 1986 e 2004, ano da 1ª Conferência de Políticas Públicas para as Mulheres.

31 anos depois, na conturbada cena política brasileira, organizações da sociedade civil que compõem o Conselho Nacional de Saúde (CNS) propuseram a realização da 2ª Conferência de Saúde das Mulheres, aprovada pelo pleno em março de 2016 e homologada, em novembro, pelo Ministério da Saúde. As duas organizações formam a comissão que é responsável pelo evento que ocorre em Brasília, no mês de agosto. A fase preparatória já está em curso e, neste mês de janeiro, devem ocorrer as primeiras etapas municipais e conferências livres (veja aqui o regimento da Conferência).

“A conferência precisa reforçar a saúde integral e pública como um direito e a equidade como uma ferramenta para combater as desigualdades, especialmente as de gênero”, aponta Carmen Lucia Luiz, conselheira nacional de saúde e coordenadora da Comissão Intersetorial de Saúde das Mulheres (CISMU/CNS). Carmen é titular da vaga para movimentos de mulheres no CNS e representa a União Brasileira de Mulheres (UBM).

Ela explica que o conjunto de possíveis delegadxs com direito a voto na conferência deve corresponder a pelo menos 60% de mulheres e até 40% de homens, divididxs entre os segmentos de gestores públicos e privados, trabalhadorxs e usárixs. “As mulheres vão ser maioria porque a decisão tem que ser delas. Queremos discutir com os homens, mas a decisão sobre si quem deve tomar são as mulheres”, afirma.

Em entrevista ao Portal Catarinas, Carmen, que faz parte da comissão organizadora da Conferência Nacional de Saúde das Mulheres, levanta questões como a lacuna de 31 anos entre a realização da primeira e da segunda edição e faz um balanço sobre a situação política e os reflexos para a saúde pública.


Catarinas: 2017 é o ano de realização da segunda conferência nacional de saúde da mulher, 31 anos depois da primeira, com o tema central “Saúde das Mulheres: Desafios para a Integralidade com Equidade”. O que será debatido nesta conferência? Quais objetivos se ela procura atingir?

Carmen Lúcia Luiz: Nós queremos debater, a partir desse tema, quatro subtemas que são: o papel do estado no desenvolvimento socioeconômico ambiental e seus reflexos na vida e na saúde das mulheres; o mundo do trabalho e suas consequências na vida e na saúde das mulheres; vulnerabilidades e equidade na vida e na saúde das mulheres e as políticas públicas para mulheres e a participação social. Todos esses eixos passam pela atenção integral e pela equidade, porque nosso objetivo final é alcançar a equidade para as mulheres em todos os níveis da sua vida. Por exemplo, quando se discute o mundo do trabalho e suas consequências temos que considerar que no Brasil os homens numa mesma função ganham mais que as mulheres, então precisamos alcançar a equidade, ou seja, mulheres ganhando o mesmo que os homens e sendo fortalecidas para chegar nesse lugar, porque ainda não estamos no ponto da igualdade, nós estamos no ponto da equidade, mais para quem tem menos e menos para quem tem mais. Todos os temas precisam ser pensado a partir do conceito de equidade.

Se a gente for buscar na educação popular, Paulo Freire já falava em empoderar pessoas para serem agentes da própria mudança, para que possam sair do lugar de opressão, nesse caso podemos transportar para mulheres: empoderá-las para serem agentes da sua própria mudança, tanto na questão da classe quanto na questão do gênero.

Nosso olhar final é para a equidade com mais ações para pessoas mais vulneráveis, e menos ações para as pessoas menos vulneráveis, enquanto a gente não chega a esse patamar de igualdade para todos.

O processo de mobilização social para a conferência prevê etapas municipais, estaduais e conferências livres que podem ser realizadas até maio de 2017. Qual o balanço dessa mobilização até o momento?

Iniciamos a etapa preparatória assim que o Conselho Nacional de Saúde (CNS) votou favoravelmente a realização da conferência em março [2016] e no mesmo mês já começamos a trabalhar para a sua execução, embora só em novembro o governo tenha homologado oficialmente. Nesse período, estivemos em vários eventos com mesas sobre a conferência e, em novembro, realizamos um grande seminário nacional convocado pela Comissão Intersetorial de Saúde das Mulheres do CNS. Nesse seminário, lançamos oficialmente o temário da conferência e começamos a debater os eixos a partir dos movimentos de mulheres que estavam presentes. Foram convidadas as redes de movimentos de mulheres e feministas, fazendo o primeiro movimento de mobilização nacional. Em janeiro, iniciam regimentalmente as etapas municipais que vão até maio, quando iniciam as etapas estaduais que tem prazo até junho para acontecerem. Durante esse período de realização das etapas municipais e estaduais é possível realizar também as conferências livres que podem ser organizadas por quaisquer segmentos, essa etapa debate os eixos e prepara para as etapas municipais, estaduais e nacional, embora não elejam delegadas e delegados.

Sobre a política nacional de atenção integral à saúde das mulheres, como a conferência pode interferir na construção dessa política pública?

A conferência propõe diretrizes que serão oferecidas para o Ministério da Saúde. Podem ser proposições de atuação ou posicionamentos contra ações inadequadas que estejam sendo construídas. Nesse momento, nós temos visto a olhos nus um retrocesso em muitas áreas e as mulheres estão sempre sendo prensadas porque esse é o lugar da mulher em nossa sociedade: ser oprimida. Mas, tem alguns acontecimentos que vão gerando proposições pontuais, porém, avançadas, como a questão das arboviroses, que inclui a dengue, a chikungunya e o zika vírus. Temos estudado o zika vírus, não sabemos ainda tudo que ele causa, mas já está bastante relacionado com a microcefalia que é uma doença muito grave, leva a morte de crianças e pode deixar sequelas terríveis para o resto da vida. E como ela acaba acontecendo em lugares de periferia, de baixa renda, sem esgoto tratado, sem algumas condições necessárias de higiene e cuidados, ela está alcançando mais mulheres jovens, negras e da periferia e isso acaba afetando também a organização capitalista porque vai precisar de mais recursos para tratar dessas pessoas. Agora com a aprovação da PEC 55 nós estamos vendo um encolhimento terrível, por anos, do dinheiro da saúde, isso significa que essas crianças que venham a ter microcefalia vão ter menos condições de serem tratadas. A ONU já defendeu que os países que estão sendo assolados pelas arboviroses deviam flexibilizar as suas legislações com relação ao aborto. É pontual, mas amplia o direito das mulheres. São contradições do momento. A gente precisa usar das contradições e tentar avançar em medida delas. A conferência quer debater essas contradições e avançar no que for possível.

A conferência ocorre em uma conjuntura política de austeridade, que refletem em medidas como a PEC 55 que estabelece teto de orçamento para a saúde. Que papel cumpre a conferência neste contexto? É possível esperar avanços nas políticas de saúde integral da mulher neste cenário?

O que a gente busca são os avanços, mas eu acredito mais que tudo que essa conferência é um movimento de resistência. Quando propomos a segunda conferência, que era necessário, 30 anos depois de silenciamento das mulheres em relação à sua saúde, colocar esse tema em debate novamente, o objetivo era conferir o que o governo está fazendo para a saúde das mulheres e o que a sociedade deseja. A conferência é um instrumento de debate, de denúncia, de resistência. Se no meio disso tudo conseguirmos avançar, vai cumprir um papel além da expectativa.

Do ponto de vista dos direitos das mulheres, enfrenta-se hoje um correlação de forças bastante desvantajosa no Congresso Nacional, além do desmonte de uma série de políticas públicas e uma ofensiva contra benefícios assistenciais e direitos na aposentadoria, parte do plano de governo do Temer. Como essas questões impactam na saúde da mulher?

Você sabe que mais de 70% da medicação psiquiátrica dispensada na atenção básica é utilizada por mulheres? As angústias das mulheres são silenciadas a partir de medicamentos, elas são muitas vezes consideradas as queixosas porque chegam ao serviço de saúde sem sequer saber identificar o que elas estão sentindo. Nesse caso, é a parcela da população que mais utiliza o atendimento público. Outro exemplo, uma das coisas que o Ministério da Saúde tem pensado ultimamente é em fazer pulverização aérea para acabar com o aedes egypt, um veneno terrível, fabricado pela Bayer, que vai envenenar talvez muito mais do que fazer bem, mas o governo precisa pagar os empresários. O Conselho já se posicionou contra, mas o Ministério da Saúde às vezes não toma em consideração o que o conselho diz, embora o CNS seja deliberativo, conforme prevê a Constituição Federal. O governo propôs também planos de saúde acessíveis sobre o qual o CNS deliberou contra, mas o governo segue fazendo debates sobre isso.

A falta de respeito, o rasgar da Constituição, está muito difícil para as mulheres. Nós ainda sofremos no Congresso Nacional uma investida dos fundamentalistas religiosos e quando eles aprovam leis são muitas vezes ruins para as mulheres.

De que forma a conferência pretende jogar luz para os direitos reprodutivos e sexuais, basilares para discussão sobre a saúde da mulher?

Nos eixos temáticos da conferência não existe pontualmente este tema, porque entendemos que isso é tão fundante na vida da mulher que no momento em que discutirmos o trabalho ou vulnerabilidade, vamos ter que debater direitos sexuais e reprodutivos. Não podemos debater nada dentro dessa conferência que não atravesse as questões relacionadas aos direitos sexuais e reprodutivos, à atenção integral e à equidade de gênero.

A primeira conferência foi em 1986. A que se deve essa lacuna de tempo para um novo marco de diálogo social sobre a saúde das mulheres?

A primeira conferência [de saúde das mulheres] foi um indicativo da oitava conferência nacional de saúde que construiu as bases para a inscrição constitucional do Sistema Único de Saúde (SUS). Foi uma das conferências mais democráticas e avançadas que já tivemos no Brasil, ela aconteceu no bojo da abertura democrática e indicou a necessidade de um espaço que debatesse exclusivamente a saúde das mulheres, porque na oitava o movimento de mulheres levou uma demanda que era “mulheres adoecem pelo simples fato de serem mulheres”. Por você ser mulher ou homem – e isso ministério da Saúde reconhece em suas diretrizes – você tem diferentes formas de adoecimento, de sofrimento e de morte, baseado nesse conceito, foi indicada a realização da conferência que aconteceu em outubro de 1986. Ela se chamou conferência nacional de saúde e direitos das mulheres. Depois disso, anos de silenciamento sobre a saúde das mulheres e de machismo parlamentar querendo tomar conta dos nossos corpos. Houve um vácuo de tempo importante que foi de 1986 até a primeira conferência de políticas públicas para as mulheres em 2004 e a criação da SPM [2003] que abraçou essas demandas. Em março de 2016, durante a reunião do conselho que debatia as lutas das mulheres, propusemos que fosse realizada a segunda conferência e o pleno do CNS tomou consciência da necessidade.

As especificidades como a condição das mulheres jovens, negras, lésbicas, trans serão abrangidas de que maneira?

Embora as especificidades sejam transversais a todos os eixos, mas em vulnerabilidades e equidade eu acredito que é onde vamos poder debater mais sobre essas populações em situação mais vulnerável. Uso o mais porque só ser mulher já é uma vulnerabilidade em si em um mundo machista, sexista, misógino, mas há aquelas com vulnerabilidades agregadas, como mulheres em situação de rua, mulheres negras, mulheres com patologias, por exemplo. Nesse eixo que também trata de equidade vamos pensar propostas de política públicas que promovam aquelas que estão em maior situação de vulnerabilidade.