A geografia afetiva de Cecília Meireles

Do Brasil a Israel, atravessando continentes, Cecília Meireles viajou por todo o mundo, colecionando sensações e descobrindo palavras para descrevê-las.

Por Jáder Santana, do jornal O Povo

Cecília Meireles - Ilustração: O Povo

As crônicas de viagem de Cecília Meireles, relançadas em box de três volumes pela Global Editora, dão conta de uma mulher habitada pelo universo. Nelas, a poetisa defende que sair de casa só vale a pena quando o esforço proporciona contato sincero com dois elementos: a terra e o povo. Seus percursos são, antes de tudo, sentimentais, e Cecília quer transmitir ao leitor uma impressão que vá além do deslocamento geográfico.

Escritas do início da década de 1940 aos primeiros anos de 1960, suas crônicas revelam, nas entrelinhas ou em reflexões de pura sinceridade, o mundo do pós-guerra, um cenário no qual a velocidade dos meios de transporte e o encolhimento das distâncias geográficas contribuíam para o fortalecimento de uma condição globalizada de estar no mundo.

Cecília vive o período de transição do navio de passageiros para a aviação comercial, e a fugacidade da nova forma de cruzar países a encanta e assusta em medidas parecidas. “Não é como o cais, onde os lenços continuam a acenar enquanto o barco se afasta. O viajante ainda está na terra, mas já está muito longe”, escreve em O Avião, crônica de 1952 presente no primeiro volume da coleção.

Quando narra suas viagens, Cecília parte da intenção jornalística e avança para uma estrutura essencialmente literária, distanciando-se da frieza dos relatos técnicos de turismo. Não lemos sobre uma viagem ao Paquistão, mas sobre o Paquistão experienciado pela autora, com seus elogios e queixas, oposições e perspectivas.

A autora abre-se a críticas, permite-se acidez -como quando se queixa da falta de natureza em Buenos Aires ou aponta esculturas detestáveis em Paris. Seus relatos são dotados de uma franqueza que aproxima o texto do que se espera de um diário, com colocações pinceladas de bom humor e momentos de reflexão que se misturam às suas memórias pessoais. Cecília quer que compartilhemos de suas experiências.

Turismo pessoal

“Grande é a diferença entre o turista e o viajante”, provoca Cecília Meireles em um texto de 1953, presente no segundo volume da coleção. A autora recusa o título de turista, refletindo que este cruza as cidades como um comerciante, buscando sensações revestidas de conforto e desfrutando prazeres de ordem material. “É uma criatura feliz, que parte por este mundo com a sua máquina fotográfica a tiracolo, o guia no bolso, um sucinto vocabulário entre os dentes: seu destino é caminhar pela superfície das coisas”.

O viajante, criatura mais triste que o outro, sairia de casa em busca de alimento espiritual, beleza, aprendizado, contemplação. Enfrentariam percursos sem a necessidade de conforto, alimentadas por sonhos e afeições, “querendo morar em cada coisa, descer à origem de tudo, amar loucamente cada aspecto do caminho, desde as pedras mais toscas às mais sublimadas almas do passado, do presente e até do futuro – um futuro que ele nem conhecerá”.

Viajando com Cecília

Os quase duzentos textos que compõem os três volumes de Crônicas de Viagem foram publicados em periódicos de todo o País entre os anos de 1941 e 1964. Os relatos de Cecília Meireles apareceram inicialmente nas páginas do jornal A Manhã, órgão oficial do Estado Novo e que tinha entre seus colaboradores nomes como José Lins do Rego, Roquete Pinto e Gilberto Freyre. Também narrou suas viagens na Folha Carioca, O Estado de São Paulo, Diário de Notícias, Correio Paulistano, Folha de São Paulo e A Noite.

Leia abaixo alguns trechos que revelam suas percepções sobre diversos locais ao redor do mundo: Brasil, Argentina, França, Holanda, Índia, Israel, Itália, Paquistão, Portugal e Uruguai. O leitor está convidado a embarcar em uma viagem com Cecília.

Montevideo

“Há muitos lugares para os apreciadores de churrasco. Embora o assunto seja um tanto canibalesco, muitas senhoras -como é natural – por ele se interessam com grande elegância. Vestem suas peles que tão aperfeiçoadamente recordam os saudosos tempos da vida nas cavernas, cobrem-se de broquéis de brilhantes, sentam-se com bons modos que denotam séculos de civilização – tudo isso para comer um pedaço de carne assada no espeto. Um pedacinho assim – de quilo e meio ou dois quilos. Esse é um dos aspectos do turismo, em Montevidéu. Vêm pessoas de longe pensando em churrascos.” (Rio de Janeiro, A Manhã, julho de 1944)

Buenos Aires

“A paisagem não distrai porque não existe. Numa grande, numa desesperada sede de natureza, sobe-se ao décimo nono andar de um edifício, onde, de um salão de chá todo envidraçado, se pode apreciar o pôr do sol misturando muita cinza de neblina fria a uns roxos eclesiásticos, por onde de repente se entremeiam adereços de turquesa, pálidos e efêmeros . […] As árvores de Palermo são insuficientes para quem leva atrás de si as florestas do Brasil.” (Rio de Janeiro, A Manhã, novembro de 1944)

Belo Horizonte

“Em primeiro lugar, Pampulha é um bairro, que certamente, será delicioso. A invenção do lago que artificialmente engastaram nesse cenário tranquilo satisfaz a saudade das águas, a quem alcança a cidade montanhosa, onde as nuvens repetem lições infatigáveis de orografia. Tanta dureza mineral contemplada na longa viagem é compensada ali pela brandura das ondas, pela sua transparência, pela sua doce flexibilidade, jovem e serena. Ali se esquecem a pedra e o metal, naquela fluidez translúcida só comparável à do próprio céu na sua constante metamorfose.” (Rio de Janeiro, A Manhã, dezembro de 1944)

Lisboa

“Por toda parte sentes o cheiro da água, o apelo à navegação, um chão mole de praia próxima, um desejo de desprender velas. Até o cavalo de D. José vai ficando verde, comido de mar, gasto pela salsugem desta saudade marinha que lentamente vive minando tudo. […] E olhas para o interior de casas que são como aquários, onde uns altivos camarões estendem seus lisos bigodes mongóis e gigantescas lagostas meditam sobre a fina cerâmica da sua arquitetura.” (São Paulo, Jornal de Notícias, dezembro de 1947)

Paris

Paris é uma espécie de mulher fatal. E que se pode dizer das mulheres fatais? Aqueles mesmos que se rendem aos seus encantos, apenas balbuciam coisas sem nexo, quando pretendem explicá-las. Coisas tão triviais, às vezes, que o ouvinte, desejoso de êxtase e instrução, fica de repente submerso em puro tédio. […] Há, porém, o viajante independente e sem delírios, que atravessa Paris com a maior naturalidade, ama os seus belos parques, detesta algumas esculturas, detém-se diante de certas antiguidades, e, na larga solidão noturna de suas ruas e praças silenciosas, contempla a auréola que os séculos fazem desabrochar em redor das velhas coisas, como os resplendores, nas imagens dos santos”. (1952)

Amsterdã

“O que me faz sofrer, na Holanda, é não ser água-fortista. Pontes, canais, desenhos da água, fachadas pontiagudas das antigas casas, torres de palácios e igrejas, relógios, chaminés, degraus de entradas e frontarias, árvores, realejos, carros, barcos embandeirados, guindastes, janelas, flores, ganchos, correntes, lampiões, telhados, tijolos, estufas de vidro, tudo solicita uma aptidão que não tenho, tudo é linear, fino, agudo, incisivo, com o lirismo do exato e minucioso, – um lirismo de pensamento mais que de coração. Por sua vez, a luz da Holanda é uma luz para pintores: este ouro leve que pousa nas paisagens, nas pessoas, nos objetos, anunciando contornos e cores, e logo desaparecendo em redor, discretamente, como se vê pelas ruas, pelos interiores, e nos maravilhosos quadros dos grandes Mestres, nos museus.” (1953)

Nápoles

Nápoles são estes quarteirões antigos, que a última guerra esfacelou; são estas lojas modernas, estes cafés onde qualquer brasileiro pensará na sua pátria com mais saudade; são estes restaurantes populares, imensos, de comidas típicas e vinhos regionais, – onde todos cantam e riem com uma expressão vigorosa de feliz cordialidade. São estes amigos que se fazem de repente, e já parecem tão antigos como no tempo de Partênope. São estas horas que deslizam sem tormento, como se fosse fácil viver.” (1953)

Bombaim

“Homens carregados com rolos de tapetes; com cestos de grãos; com tabuleiros de comida amarela e cor-de-rosa; homens com livros embaixo do braço… Rapazinhos com marmitas de comida, crianças pulando corda, mulheres com vasilhas d’água à cabeça… Muita, muita gente. Muitas, muitas cores. Muitos ritmos. Muitas direções. E os automóveis, os carros, com cocheiros de turbante; as bicicletas, os pedestres, e o cruzamento das ruas, e a pressa, e a ondulação de todos os vestuários, e a estridência da luz nas cores – burburinho…” (Rio de Janeiro, Diário de Notícias, 1953)

Karachi

“Em Karachi, a solidão era amarelada e arenosa. Dos veículos, como dos passantes, parecia desprender-se um vento pesado de poeira, cor de ouro fosco, muito densa e acre. Os lentos camelos que atravessavam as ruas puxavam carros também assim amarelados; eles mesmos pareciam cheios desse pó na sua pelagem ruiva e levantavam muito alto o perfil, como à procura de ar mais leve para a dilatada narina. […] Tudo isso é num ambiente compacto, pois as ruas do bazar são estreitas, e os passantes, lentos, bem-nutridos, contemplativos, não dão passagem com facilidade.” (1955)

Jerusalém

Israel tem essas duas capitais: Jerusalém e Tel Aviv. Quando Israel significa – aos olhos do forasteiro, naturalmente – a terra bíblica, um mundo de elaboração espiritual, cruzado pela voz de Deus em todas as direções, então, a capital é Jerusalém. Quando Israel – sempre aos olhos do forasteiro – significa um país novo, reunindo a sabedoria antiga à experiência moderna, com raízes no Oriente e fronde no Ocidente, então, a capital é Tel Aviv. É um pouco assim como a história de Maria e Marta. Cada um ama o que pode. Mas quem pode deixar de amar Jerusalém? (Rio de Janeiro, Diário de Notícias, outubro de 1958)