31 anos sem Juan Rulfo: Hipóteses sobre o silêncio

Este domingo marca 31 anos sem o escritor e fotógrafo mexicano Juan Rulfo (1917-1986). Lançou apenas dois livros: El llano en llamas, de contos; e o romance Pedro Páramo, responsável por torná-lo nome essencial dentro da literatura hispano-americana. Depois disso, decidiu não mais escrever. Neste artigo, que agora republicamos, a pesquisadora Theresa Bachmann analisa os possíveis motivos de seu silêncio autoimposto.

juan rulfo
Rulfo: Hipóteses sobre o silêncio

Por Theresa Bachman

Os mitos que cercam o escritor mexicano Juan Rulfo, cuja obra ficcional é composta apenas por um livro de contos e um romance, voltam-se a uma só pergunta: o que esconde sua decisão em parar de escrever? Em 1953, aos trinta e seis anos, ele publica os contos de El llano en llamas; dois anos depois, sai da prensa o seu segundo livro, o romance Pedro Páramo. A partir de então, de 1955 a 1986, ano de sua morte, o escritor silenciaria; já o homem Juan Rulfo, sempre arredio às rodas sociais, passou a viver inicialmente sob a cobrança por novos textos.

Depois de uma certa aceitação do seu silêncio criativo por parte da crítica e do público, essa cobrança cedia lugar a uma insistente pergunta: por quais razões ele parara de escrever?

O balcão de apostas lançava (e ainda lança) como possíveis respostas diversas teorias. Há quem aposte todas as fichas numa suposta dependência alcoólica; há quem arrisque tudo dizendo que o escritor sofria de depressão. Uma vez, ao ser perguntado, Rulfo saiu com o seguinte: parara de escrever porque o tio que lhe contava as histórias havia morrido, e, assim, não tinha mais de onde tirá-las.

Se existiu ou não esse tio, ele não nos foi dado a conhecer em carne e osso; sua hipotética figura representa, sim, uma grande simbologia das histórias que Rulfo ouviu e presenciou. Nascido no conturbado México de 1917, marcado inicialmente pela Revolução Mexicana e, logo, pela Guerra Cristera, o escritor traz para a sua criação indícios dessa realidade de pobreza, corrupção e violência.

A vida de Rulfo também não ficou imune a esse cenário. Alguns dos seus familiares foram vítimas de assassinato, todos com a fatídica idade de 33 anos. Assim também aconteceu com o seu pai. Mas foi aos dez anos, quatro anos após o assassinato paterno, que o menino Juan era de vez abraçado pela orfandade. Diz-se de sua mãe que morrera de tristeza por não suportar a ausência do marido, e por deparar-se por duas vezes com a figura do seu assassino. Com a morte dela, ele foi mandado para um colégio interno, de onde saiu aos quinze anos.

Ainda jovem, passa a trabalhar na Cidade do México. É às voltas com a solidão e com o isolamento da vida que levava na capital do país que ele deixou aflorar as suas três grandes paixões: a literatura e a fotografia, pelas quais se mantinha cada vez mais rodeado; e Clara, sua futura esposa, cujas saudades ele tentava administrar.

Clara Aparicio morava na distante Guadalajara, capital do estado de Jalisco, localizada a cerca de 600 quilômetros do Distrito Federal. Durante os anos que precederam o casamento, eles viveram um namoro à distância marcado pela cumplicidade. Nesse meio tempo, Juan e Clara trocaram inúmeras cartas. Através dessa vasta e intensa correspondência, hoje parcialmente reunida em Aire de la Colina (uma das maneiras como o apaixonado Juan tratava Clara), Rulfo, além de todo o bem-querer, compartilha com ela as suas expectativas como escritor, a sua relação com a fotografia e as suas angústias pessoais.

Talento e agruras

Por meio dessas missivas, ficamos sabendo das suas primeiras publicações nas revistas América e Pan, da impressão que ele tinha a respeito dos seus próprios escritos, assim como do seu processo de criação. Nelas é possível identificar, inclusive, a gênese de Pedro Páramo, que o fez despontar como o maior nome da narrativa mexicana de todos os tempos.

O cenário da ficção de Rulfo é o México rural, que ele teve a oportunidade de conhecer ainda mais a partir das inúmeras viagens que fez pelo país nos tempos que trabalhou como representante comercial. Se o cenário é particular, a narrativa dele, no entanto, é universal, tanto sob o prisma estético quanto acerca do temático.

O mundo ficcional erguido nas paragens mexicanas é território de trânsito de homens universais: ora implacáveis e poderosos, como o Pedro Páramo do seu romance; ora esperançosos e desgraçados, como os quatro infelizes de E nos deram a terra, um dos seus contos; ora ingênuos e temerosos, como o pequeno de É que somos muito pobres, que narra o medo pela sorte da irmã, condenada à mesma vida de prostituição das duas mais velhas, após a morte do que seria o seu dote, a vaca Serpentina, levada pelo rio depois de uma enchente.

A narrativa de Juan Rulfo é feita de talento e agruras. Tanto os seus contos como o seu romance são relatos incisivos, repletos de homens possíveis que encenam uma realidade possível. Rulfo capta a essência de uma experiência.

Mas não é certo que Rulfo abandonou a pena. Poderíamos dizer que ele parou de publicar. O homem curioso que foi (interessado por história, geografia, antropologia e literatura), na sua maneira silenciosa e pouco afeita a propagandas e rodas sociais, abrigava um intelectual extremamente ativo.

Rulfo escreveu até a vizinhança da morte. Enquanto prometia à editora e ao público o seu romance A cordilheira, Rulfo devorava livros e escrevia ora anotações, ora impressões, ora ensaios inteiros sobre os mais variados temas. Da literatura, não escondia o seu apreço pela brasileira, especialmente por Graciliano Ramos e Guimarães Rosa, de quem fora amigo pessoal.

Se a sua literatura transcria um México rural, é no México urbano de uma das grandes metrópoles do mundo onde ele passa a maior parte da vida. É lá que ele cria os seus quatro filhos: Claudia, Juan Francisco, Juan Pablo e Juan Carlos. É lá que ele trabalha por muitos anos, já escritor consagrado, no Instituto Nacional Indigenista. É lá também onde termina os seus tempos num dia gelado de janeiro de 1986.

De volta às apostas

O peso de sua obra fez de Juan Rulfo um dos autores mais traduzidos do México. Seus livros foram vertidos para inúmeras línguas e publicados em dezenas países. Dez anos após a sua morte, nascia a Fundación Juan Rulfo, criada e mantida com fundos da própria família. A FJR realiza um trabalho extremamente sério de conservação e difusão da obra do escritor. Além dos seus escritos, a FJR conserva mais de seis mil negativos de fotos que ele tomou, sobretudo nas décadas de 1940 e 1950.

Voltando ao balcão de apostas, se o tio, cujas histórias serviam de mote para a sua narrativa, não passa de uma grande simbologia, é certo que Rulfo era um bom ouvinte, e que adorava esquecer-se do passo das horas perdido em longas conversas. É bem provável que esse seu tio hipotético simbolize essas vozes familiares que lhe inspiravam. Mas como essas vozes não morrem, e como Rulfo nunca deixou de ser um bom ouvinte, talvez ele tenha parado de criar por ter expurgado, na sua escrita de poucas páginas e de uma intensidade inenarrável, todos os seus demônios. Senão expurgado, ao menos aberto as portas para que ganhassem liberdade. De tão efetivamente libertos, esses demônios saltam das entrelinhas dos seus textos e invadem o imaginário dos seus leitores, remexendo e desacomodando as ideias. Se for certo que Rulfo parou de criar, eu sou dos que apostam boa parte das fichas neste argumento aqui.