Haroldo Lima: A advertência de uma Chacina de 40 anos

O tempo interfere implacável na apreciação dos fatos. Primeiro, esmaecendo a visão dos acontecimentos, cada vez mais difusos e distantes. Depois, ajudando a esclarecer se um episódio determinado registra um fato efêmero, secundário, ou se retrata um marco importante, de valor histórico.

Por Haroldo Lima*

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Assim, transcorridos 40 anos da Chacina da Lapa, a memória de certos detalhes vai ficando tênue, mas vai ficando mais nítido o significado histórico daquele acontecimento trágico.

Em primeiro lugar, a simples descrição do que foi o episódio serve para mostrar, sobretudo às novas gerações, como vivia nosso país na época da ditadura, quando quem quisesse discutir o Brasil, seus problemas e seu futuro, tinha que assumir a mais completa clandestinidade, alojar-se nos esconderijos e permanecer sob perene ameaça de morte.

Rever esses fatos serve como uma advertência, principalmente ante a insensatez de grupos que hoje exibem faixas pedindo o retorno da ditadura.

A Lapa chacinada conta a história de uma reunião que a direção do Partido Comunista do Brasil realizou na Rua Pio XI, número 767, em São Paulo, em 1976. O Partido, ainda abalado pela derrota da guerrilha do Araguaia, procurava aprofundar o exame daquela luta, para tirar lições. Mas não só.

Em 1975, a direção do Partido, reinterpretando a nova situação do país, reorientara sua ação na busca de três objetivos, a anistia, a revogação dos atos e leis de exceção e uma Constituinte livremente eleita.

A reunião da Lapa examinava também como essas três bandeiras estavam repercutindo na sociedade.

Vivíamos sob uma ditadura ainda tenaz. Já tinha 12 anos mas, longeva, depois da Lapa, ainda duraria 9. Contudo, seu período mais dinâmico passara.

Instalada em 1964, ela se beneficiara de um momento internacional favorável, principalmente quanto ao preço baixo do petróleo, o que favoreceu ao chamado “milagre brasileiro”, caracterizado por altas taxas de crescimento da economia.

A partir de 1973, com os preços do petróleo acrescidos em cerca de 400%, no chamado “primeiro choque do petróleo”, tudo ficou mais difícil. O “milagre” acabou e a ditadura foi percebendo a aversão que a sociedade lhe devotava. Daí que o general Geisel, ao assumir a Presidência da República, em março de 1974, iniciou a chamada “abertura lenta, gradual e segura”.

Mas a truculência continuou. Desde sua posse, em 15 de março de 1974, até 1976, computam-se mais de 40 assassinatos de dirigentes de organizações de esquerda.

O PCdoB percebia que, com ou sem distensão, a ditadura comportava-se como se tivesse uma conta a ser ajustada: a conta com o partido que dirigira a guerrilha do Araguaia, que era o partido do socialismo.

Essa conta começara a ser cobrada logo depois do início da guerrilha, em março de 1972, com a “guerra suja” deflagrada na selva, simbolizada nas decapitações de guerrilheiros presos, e com o ataque à retaguarda política e logística da guerrilha, o Partido nas cidades. E foi assim que, ainda em 1972, frentes partidárias foram golpeadas no Rio de Janeiro, em junho, e no Espírito Santo, em novembro.

O período que vai de dezembro de 1972 a março de 1973 foi particularmente trágico para o Partido, pois são presos, torturados e mortos os membros do Comitê Central Lincoln Cordeiro Oest, Carlos Nicolau Danielli, Luiz Guilhardini e Lincoln Bicalho Roque. Em setembro de 1975, foi a vez de Armando Teixeira Frutuoso, um líder operário do Rio de Janeiro, que também era do Comitê Central. A conta com o Partido ia sendo cobrada paulatinamente, em vidas humanas.

À proporção que dirigentes de frentes importantes iam sendo assassinados, trabalhos ficavam acéfalos e desgarrados. Com as perdas no Araguaia e nas cidades, o Partido se enfraquecia.
É nesse momento que ocorre um fato que vem revigorar o Partido. Depois de longa luta interna em torno de posições ideológicas e políticas, o agrupamento que no momento tinha a maior penetração social no movimento de massas, principalmente no meio estudantil, a Ação Popular Marxista Leninista do Brasil, em sua quase totalidade, em março de 1973, se incorpora ao PCdoB.

É por isso que, na reunião chacinada da Lapa, estavam antigos dirigentes do Comitê Central do PCdoB e novos dirigentes oriundos de Ação Popular.

A reunião transcorreu em clima de normalidade aparente, sob a direção de Pedro Pomar, um dos mais destacados dirigentes de toda a história do Partido.

Ao final, seus participantes saiam de dois em dois, em carro dirigido por Joaquim Celso de Lima e monitorado por Elza Monnerat. Na noite de 15 de dezembro, Wladimir Pomar e João Batista Franco Drumond foram os primeiros a sair, Haroldo Lima e Aldo Arantes saíram depois.

As viagens eram feitas com os dirigentes de olhos fechados. Quando desembarcavam, o carro retornava, Elza e Joaquim acreditando que tudo estava bem. Na verdade, logo que as duplas saiam do carro, ficavam ao sabor da repressão, e foram ou imediatamente presos, ou, no caso de Haroldo, seguido até sua casa e preso no dia seguinte, logo cedo.

Na noite do dia 15, em meio a torturas, no DOI-Codi, João Batista Franco Drumond foi morto.
No dia 16, o carro faz sua primeira viagem logo cedo, às seis da manhã, com José Novaes e Jover Teles. Diferentemente das outras vezes, outro carro o acompanhou acintosamente, de forma a não deixar dúvidas de que o seguia. Joaquim acelera, dá voltas e quando pensa que escapou, para, e a Elza dá fuga a Novaes e Jover.

Pouco depois, o carro é abalroado e Joaquim e Elza são presos.

Nesse instante, a casa da Lapa, que permanecera cercada todos os dias da reunião, é bombardeada, por vinte minutos. Nenhuma tentativa de prender Pomar e Arroio. A ordem era matar. E eles são fuzilados.

E assim ficou o balanço da Chacina: três mortos, Pedro Pomar, Ângelo Arroio e João Batista Franco Drummond; seis presos, Wladimir Pomar, Aldo Arantes, Elza Monnerat, Joaquim Celso de Lima, Maria Trindade e eu, Haroldo Lima; uma casa destruída; dois Exércitos envolvidos, o do Rio de Janeiro e o de São Paulo; uma área da Lapa interditada e atônita. Era um episódio típico da ditadura, apesar de já ter havido o assassinato do Herzog um anos antes, e de Manoel Fiel Filho, há onze meses, após o que, dizia-se que as torturas e assassinatos acabaram.

Em seguida, começa a peripécia dos presos: encapuzados, postos em aeronave para o Rio; incomunicáveis, durante dias, simplesmente “desaparecidos”; torturados barbaramente no Rio e em SP; jogados em solitária, inteiramente despidos, por tempo prolongado, no DEOPS paulista. E frise-se: todo esse tratamento foi também para Elza Monnerat, de 63 anos.

A despeito desse barbarismo, nenhuma prisão posterior aconteceu, nenhum organismo ou frente de trabalho foi atingido, tudo permaneceu incólume. O Partido pode rearticular-se rapidamente.

Como pôde ter caído a reunião da Lapa?

Entre os presos, no presídio, o problema foi levantado. Wladimir foi quem primeiro desconfiou de que houvera traição, e de uma pessoa determinada. Acertou.

Quando uma Comissão de averiguação foi constituída pelo Partido e informações da própria repressão puderam ser computadas, patenteou-se que houve traição e que o traidor fora Jover Teles. Aquela fuga de que falei acima foi facilitada, e o Novaes escapou porque estava com ele, para não chamar a atenção para uma fuga única.

Agora, 40 anos depois da Chacina da Lapa, ante a memória dos bravos camaradas que ali tombaram, Pedro Pomar, Ângelo Arroyo e João Batista Franco Drummond, as nossas bandeiras de combate se inclinam, respeitosa e demoradamente. E põem- se de pé, em alerta máximo, para, junto com nosso povo, repelir resolutamente qualquer tentativa que nos ameace trazer de volta a ditadura.

Honra e glória aos mártires da Chacina da Lapa.

Viva a Liberdade.