AI 5: a ditadura tirou a máscara

O dia de hoje, 13 de dezembro, marca os 48 anos desde que a ditadura militar instituída em1964 tirou definitivamente e máscara e assumiu o caráter fascista que teria nos anos seguinte. Naquela noite, ela rasgou definitivamente a Constituição e assumiu a ditadura aberta regida pelo Ato Institucional nº 5, que permitiu ao governo dos generais todas as ilegalidades, entre elas a prisão, tortura e assassinato de seus oposicionistas. 

AI 5: a ditadura tirou a máscara - Reprodução

No texto a seguir, o segundo capítulo de seu romance As moças de Minas, Luiz Manfredini descreve aquela noite terrível.

Por Luiz Manfredini

Às onze da noite de 13 de dezembro de 1968, uma sexta-feira, os aparelhos de tevê do país inteiro captaram a fisionomia severa, grave, mas naquele instante secretamente satisfeita do ministro da Justiça, Luiz Antônio Gama e Silva. Do Salão Nobre do Palácio das Laranjeiras, no Rio, ele ocupava uma rede de rádio e tevê dirigida pela Agência Nacional para anunciar aos brasileiros importante medida tomada momentos antes pelo governo, em reunião do Conselho de Segurança Nacional.

A testa larga, os óculos de aros negros e espessos, a papada a insinuar-se logo abaixo da linha do maxilar, o ar sisudo, tudo isso conferia ao ministro uma expressão acadêmica, professoral, que as câmeras ressaltavam enquanto ele denunciava estar em curso, no país, verdadeira guerra “onde os mais diferentes setores partiram, comprometidos com o regime deposto, para combater a revolução”. Eram “forças adversas”, sublinhava Gama e Silva, “valendo-se dos mais variados processos de agitação e subversão, num crescimento contínuo a envolver o próprio parlamento, onde o governo passaraa ser contestado até mesmo por membros do partido situacionista que tinham a responsabilidade de defender, do Congresso Nacional, a revolução de março de 1964”.

Gama e Silva mantinha-se recostado na poltrona, levemente inclinado à esquerda. Era o único traço de certa displicência na vetusta cena que a tevê espalhava pelo Brasil afora.

“É necessidade imperiosa” – prosseguiu -, “na defesa dos interesses superiores da nação e do povo brasileiro, adotar medida, na verdade de caráter excepcional, mas que tem por finalidade cumprir o dever a que nos impusemos como elementos da revolução de 31 de março de 1964”.

Em seguida, o locutor Alberto Curi, que todo o tempo mantivera-se ao lado do ministro da Justiça, leu a aturdidos telespectadores a íntegra do Ato Institucional número 5. Eram as novas regras políticas sob as quais o país passaria a viver. Por elas, o presidente da República, à revelia do Legislativo e do Judiciário, poderia decretar o recesso do Congresso Nacional, das assembléias legislativas e câmaras municipais, intervir nos estados e municípios, suspender os direitos políticos por dez anos de qualquer cidadão e cassar os mandatos de parlamentares, impor o estado de sítio. O ato suspendia o habeas corpus para crimes contra a segurança nacional, a ordem econômica e a economia popular e decretava o fim da vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade nas funções públicas.

Em seguida, foi lido o texto do Ato Complementar número 38, decretando o recesso do Congresso Nacional por tempo indeterminado.

Depois de 27 minutos de transmissão, o ministro Gama e Silva deixara o palácio, em meio a efusivos cumprimentos de militares, ministros e assessores presidenciais que ali se reuniram para assistir ao anúncio.

“Esta sexta-feira foi 13 para muita gente”, comentou o ministro na saída.

Apresentava a mesma fisionomia severa, grave, mas intimamente satisfeita. Sentia-se vitorioso. Há tempos carregava no bolso a minuta de um ato institucional, propagandeando-o como a solução de força capaz de estancar a onda de agitação que havia tomado conta do país durante o ano.

O ato foi incisão profunda, extensa e traumática na vida nacional, assustando até mesmo um deputado arenista, Clóvis Stenzel, que sentenciou: “Ninguém está a salvo, ninguém mesmo. Nem eu”.

Nos primeiros dias de 1969, um balanço atestava o alcance do processo de retaliações: cassação dos mandatos de 35 deputados federais e dois senadores, aposentadoria de três ministros do Supremo Tribunal Federal e de um ministro do Superior Tribunal Militar.

Porém, a devastação mais extensa ocorreu por baixo, atingiu jovens estudantes, operários, intelectuais, lideranças camponesas, religiosos, gente que se havia insurgido pela liberdade e transformado praticamente todo o ano de 1968 num palco de inusitada resistência à ditadura. Agora estavam sendo caçados como feras pelo apetite sanguinário de hordas policiais e militares atiçado pelo AI-5.

O ato resultara do parto prolongado e difícil de quase 100 dias de crise, cujo ponto de largada situava-se na primeira semana de setembro. Num discurso de menos de dez minutos proferido no pequeno expediente da Câmara Federal, esbravejado para um plenário quase deserto, o jovem deputado do MDB carioca, Márcio Moreira Alves, de 32 anos, protestou contra a invasão policial da Universidade de Brasília, ocorrida nos últimos dias de agosto. Ao denunciar a “cúpula militarista” que estava levando o País para “um estado de coisas com conseqüências imprevisíveis”, o parlamentar exortava a população de Brasília a não comparecer aos desfiles de 7 de Setembro e apelava às jovens para que “não dançassem com os cadetes do exército nos bailes” que seriam realizados naqueles dias.

A reação foi instantânea. “As Forças Armadas estão inconformadas com a afronta pública feita a seus brios”, trovejou o ministro Lyra Tavares, do exército. O governo, fazendo coro ao sentimento de ultraje acusado pela organização militar, resolveu pedir licença à Câmara para processar o deputado. Mas esbarrou num plenário pouco disposto a abrir mão da prerrogativa de imunidade de seus membros. Numa sessão extraordinária, que ocupou toda a manhã e metade da tarde do dia 12 de dezembro de 1968, a Câmara, em votação aberta, rejeitou a solicitação governamental por 216 votos contra 141. Entre aplausos, prantos e vivas, a sessão terminou com todos – plenário e galerias – cantando o Hino Nacional.

O marechal Costa e Silva, naquele instante, viajava de Belo Horizonte para o Rio. No rádio do carro que o conduzia do aeroporto ao Palácio Laranjeiras, ouviu, atônito, a notícia da votação na Câmara. No palácio, trancafiou-se em companhia dos generais Garrastazu Médici, chefe do Serviço Nacional de Informações; Orlando Geisel, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas; e Lyra Tavares, ministro do exército. Estava convocada para o dia seguinte importante reunião do Conselho de Segurança Nacional. Ela marcaria o fim da “crise dos 100 dias” e o início do “ano zero da revolução”.