O samba centenário e sua história de glória, exclusão e resistência

Conversando em novembro Pelo Telefone com o pesquisador de música popular brasileira José Roberto Zan eu me lembrei da composição A Força do Samba, de Luiz Grande. À certa altura do samba, o autor diz: “…Vem onda, sai onda e o samba está sempre aí. Firme e forte com força para resistir”. O bate-papo com Zan tratou exatamente da parte que “o samba está sempre aí”, se transformando ao longo do século XX.

Por Railídia Carvalho

Candeia

Zan é do departamento de música do Instituto de Artes da Universidade de Campinas (Unicamp). A primeira observação dele é a mudança na dinâmica do samba quando é incorporado pela indústria fonográfica. O marco é o samba Pelo Telefone (Donga e Mauro de Almeida), registrado em novembro de 2016, o que originou as comemorações do centenário.

A cultura da autoria


A indústria do disco cria e reforça a ideia de autoria, continuou Zan. Segundo ele, esse é um aspecto importante que se revela na história de "Pelo telefone”. "A iniciativa de Donga de registrar em seu nome a autoria do samba, uma criação coletiva, e toda a polêmica que essa atitude gerou na comunidade ( ou na casa da Tia Ciata) revela a formação dessa cultura entre músicos populares; a cultura da autoria", esclareceu.

Originalmente um samba de partido alto, em que os versos são improvisados, Pelo Telefone resulta de uma criação coletiva, uma colagem de versos de manifestações populares.

”O que era muito comum nas rodas de samba. Eram rodas festivas, as pessoas ficavam durante horas cantando e improvisando. Alguns versos eram de autores anônimos cantados em rodas”, descreveu Zan (na foto à direita).

O contexto de Pelo Telefone estava fortemente integrado às comunidades negras dos bairros populares do Rio de Janeiro. A composição surgiu na casa da matriarca Tia Ciata, baiana considerada personalidade fundamental no surgimento do samba no Rio.

Gênero camaleônico

A indústria fonográfica impactaria fortemente na dinâmica do samba, que vê surgir na música do compositor Sinhô a incorporação de novos aspectos no formato.

Segundo Zan, essa linha de samba de Sinhô chega “mais arredondada”. São os anos 20, quando se consolidam as gravações de música brasileira pela casa Edison, inaugurada no início do século.

As composições começam a descaracterizar a colcha de retalhos. “A música de Sinhô tem duas partes bem definidas, com letras ágeis. Com refrão de fácil memorização. Ele se notabilizou como autor de muitos sucessos carnavalescos que lançava na Festa da Penha e a população cantava imediatamente”, disse o professor.

Quanto mais o samba se integrava ao mundo do disco e do rádio, nos anos 30, também se distancia da origem ligada às comunidades negras e de ex-escravos. O gênero caminha para se transformar no elemento de identidade nacional.

“Num primeiro momento sofre preconceito de setores intelectualizados e elitizados mas, gradativamente, vai sendo reconhecido como expressão legítima da cultura popular carioca e brasileira. Acaba sendo eleito como um símbolo da nossa identidade cultural, o samba ganha um certo consenso”, explicou.

Samba, branco na poesia

O professor afirma que Aquarela do Brasil (Ary Barroso, na foto) é simbólica da fase: “O Brasil samba que dá. Bamboleio que faz gingar. O Brasil do meu amor. Terra de Nosso Senhor”. “Fala de um Brasil consensual, sem conflito, quase paradisíaco”, completou Zan.

O refinamento estético do samba, os arranjos orquestrados e a música que se tornou o símbolo da brasilidade afastam de vez o samba das origens afrodescendentes. Segundo o professor Zan, esse processo culmina na criação da Bossa Nova, que traz um samba estilizado, refinado, feito por autores que em sua maioria pertencia a uma classe social de poder econômico superior ao dos compositores populares.

Zan mencionou dois sambas de representantes da Bossa Nova que dialogam com as origens do gênero, a nova estética sonora e com a percepção de que o samba não é mais o mesmo. Vinicius de Moraes e Baden Powell afirmam em Samba da Benção: “Se hoje ele (o samba) é branco na poesia. Ele é negro demais no coração”.

Carlinhos Lyra em Influência do Jazz não deixa dúvidas no seu samba-jazz que o samba precisa voltar às origens: “Pobre samba meu foi se misturando, se modernizando e se perdeu…”. 

“O Carlos Lyra era diretor do departamento de música do Centro Popular de Cultura da UNE (CPC-UNE). Ele produziu um espetáculo e chamou sambistas negros, que eram marginalizados e estavam esquecidos. Entre eles Cartola e Clementina de Jesus”, afirmou Zan.

O Brasil da exclusão

De acordo com Zan, esse retorno às origens do samba nos anos 60 e 70 vê surgir o segmento fonográfico da Música Popular Brasileira (MPB) e testemunha a incorporação do universo da música negra americana, com Jorge Bem Jor como referência, e a sonoridade de João Bosco e Aldir Blanc.

Zan ilustra o samba particular dessa fase com as músicas Charles, Anjo 45 (Jorge Ben Jor) e Tiro de Misericórdia (João Bosco e Aldir Blanc).

“Aí o samba está deixando de ser expressão da brasilidade, um samba consensual, e passa a ser um gênero que volta a estar associado a determinadas comunidades e, ao mesmo tempo, traduzia as condições sociais de comunidades marginalizadas do ponto de vista econômico. O malandro é um herói. Charles 45 é um samba que parece que anuncia ruptura do pacto nacional”, analisou.

“Paulinho da Viola vem em uma outra perspectiva na sua reafirmação das raízes populares. Aborda o morro, as comunidades tradicionais do Rio de Janeiro e brasileiras como a base do samba, como a referência maior. Existe uma certa polaridade”, ressaltou Zan. Dessa fonte beberam Wilson Moreia e Nei Lopes, Candeia e Leci Brandão.

Um século de resistência

O clube do samba criado nos anos 80 foi um marco da reafirmação das raízes brasileiras do samba. Surgiu como reação à febre da música estrangeira no país. Os sambistas tinham pouca ou nenhuma oportunidade para gravar ou se apresentar. João foi o articulador de uma iniciativa que era frequentada por Beth Carvalho, Clara Nunes, Martinho da Vila, Paulinho da Viola, Roberto Ribeiro.

O samba anunciado no início da matéria chamado A Força do Samba foi gravado por João Nogueira em 1980 no LP Boca do Povo. “O tempo vai passando e o samba vai seguindo. O povo está feliz cantando, sambando, sorrindo e aqui vamos nós tirando esse som que de dentro do peito nos sai, o samba balança porém não cai”.

Após a fase do samba de entretenimento, sem compromisso, difundido pela indústria cultural nos anos 90 um movimento de rodas de samba e comunidades de terreiro surgiu para recuperar a memória dos sambas e dos sambistas esquecidos.

A memória nas comunidades de terreiro de São Paulo

São Paulo, uma outra história do samba a ser contada, representa atualmente hoje no país um foco de preservação do chamado samba tradicional. São as comunidades de terreiro, rodas de samba e projetos culturais que tomaram conta de toda a extensão da grande paulicéia e interior. É como se o samba voltasse ao berço das comunidades afrodescendentes. Kolombolo Diá Piratininga (foto) tem preservado a memória de sambistas como Tio Mário e Toniquinho Batuqueiro, entre outros bambas de São Paulo.

Para Zan, a história do samba revela aspectos da dinâmica da cultura brasileira no século XX. "O samba e a música popular em geral são crônicas da vida cotidiana, que é capaz de revelar aspectos inusitados da vida social”, enfatizou.

Perguntei ao professor sobre as políticas de preservação da cultura do samba e dos autores populares, que estão sempre à margem das políticas de inclusão e preservação. Zan confirmou a precariedade e o descompromisso em relação a esse conhecimento.

“Não temos preocupação forte em preservar manifestação locais fora do circuito de mercado e que acontecem por aí. Esse trabalho ainda é precário no Brasil. O projeto Rumos foi importantíssimo nesse sentido”, citou um único exemplo.

O programa Rumos do Itaú Cultural realiza mapeamento de autores populares – entre eles sambistas. Zan contou também que a Unicamp criou recentemente uma cadeira de etnomusicologia para ter como objeto de estudo as práticas musicais populares do Brasil.

Começamos a matéria com a música de Luiz Grande e finalizamos com ele. Ex-taxista, filho de empregada doméstica, Luiz canta os ancestrais: “Vem de alguns anos atrás essa grande estrutura. Pro samba poder suportar qualquer temperatura…” Ouça Luiz em entrevista a Diogo Nogueira, filho de João Nogueira.