Meio século: uma vida, uma luta

Chovia em Curitiba na tarde de 3 de dezembro de 1966. Lá se vão 50 anos e me recordo, como se olhasse uma fotografia, daquela chuva com sol. Chuva e sol, casamento de espanhol, dizíamos, crianças. Sol e chuva, casamento de viúva. Às 3h30 meus amigos Celso José Gorski e Paulo Sá Brito me apanharam em casa e, após uma caminhada chegamos onde morava a então estudante de jornalismo Tereza Urban. De lá saí, hora e meia depois, militante da organização revolucionária Ação Popular.

Por Luiz Manfredini*

Luiz Manfredini - Reprodução

Olho atrás, eu era então um rapazote imberbe de 16 anos que buscava – e, afinal, encontrou – no marxismo, então proscrito pela ditadura militar, a ideia totalizante que lhe desse sentido à vida, mas não um sentido qualquer. Eu perseguia o que fosse capaz de fundamentar teoricamente minha inclinação ainda intuitiva por uma sociedade socialista, que pensava – como penso até hoje – igualitária, fraterna, culta e democrática.

Meu olhar agora desliza pelo meio século que me separa daquela tarde de chuva e sol da minha adolescência e então repassam, como um lento desfile de fotogramas, as lutas contra a ditadura nos anos 1960, entre estudantes e camponeses, as asperezas da clandestinidade, as fugas e prisões, o ingresso no Partido Comunista, os amores subterrâneos, a juventude empenhada na luta e na esperança, a luz da anistia, as campanhas das Diretas-Já e da Constituinte, a lenta e persistente construção partidária, os anos duros do neoliberalismo, as vitórias de Lula e Dilma, e lá se vão os anos contados em dez mãos, uma vida e tantas batalhas.

Penso no jovem de 16 anos que desejava para sua vida, para a vida à qual chegara fazia pouco, um sentido revolucionário. Um sentido que se manteve íntegro até mesmo quando os sonhos pareciam ruir com o muro de Berlin. Uma força de convicção que soube renovar-se sem perder o sentido original. Em meu romance “Memória de Neblina” Lau, o protagonista, diz a seu amigo Pedro:

“É isso, Dom Pedrito, os valores resistiram aos escombros do muro de Berlin. E não é pouco… Quantas consciências não se afogaram sob aquelas ruínas? Quanta gente não imaginou que a utopia perdeu-se naqueles destroços, quantos não encontraram jamais o fio da sua história, quantos mesmo a renegaram, quantos se venderam, quantos se tornaram cínicos, quantos enlouqueceram?”.

Olho para o que hoje me cerca, tempos sombrios de ataques à civilização, de retrocessos, de mentes rendidas à mentira e ao engodo e postas ao serviço da avalanche fascista. Procuro em mim o ardor e o sonho do rapaz de 16 anos que buscou e encontrou um sentido revolucionário para sua vida. Ali está ele, vejo-o na fotografia, ali estão os seus olhos de valentia e paixão, de repto e convocação. O que me cerca e à minha gente, são dias de escuridão. Mas aqui está, intacta e empunhada, a bandeira de combate que vem de longe, de cinco décadas, unindo tantos e tantas sob o manto do sonho e da luta. Amanhã serão cinquenta anos mais um dia, e depois mais dois, mais três e assim pelo tempo restante que a vida conceder.