O Ministério da Educação como exemplo da guerra interna dos golpistas

“Se o temer não aceitar o PSDB, o PSDB vai fazer voo solo”, disse o cientista político Daniel Cara, ao telefone, para o The Intercept Brasil. Ele fala sobre o racha entre PSDB e governo, especialmente dentro do Ministério da Educação (MEC).

Por Helena Borges

Mendonça Filho - Valter Campanato/Agência Brasil

Como coordenador-geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Cara acompanha de perto os bastidores da reforma do ensino médio, um dos principais pontos da rixa entre as equipes lideradas por Maria Helena Guimarães de Castro e Maria Inês Fini e o grupo orientado pelo DEM, o partido do ministro Mendonça Filho. Nomes de peso na cúpula técnica tucana, as duas ocupam, respectivamente, os cargos de secretária executiva do MEC e presidente do Inep, o instituto responsável pelo Enem.

Segundo Cara, muitos dos problemas que levaram a manifestações contra a reforma são fruto de um desentendimento entre os dois grupos. Entre eles, por exemplo, a pressa em realizar o projeto no formato de Medida Provisória, em vez de dar tempo ao diálogo, explicando a reforma em detalhes para a população e abrindo espaço para críticas, conforme defendiam as educadoras.
Depois de 12 reuniões, a Comissão Mista criada para debater a MPencerrou seus trabalhos na quarta-feira, dia 30, com alterações como o retorno do ensino de artes e educação física ao currículo obrigatório. As conclusões dos debates realizados nas audiências públicas foram reunidas e organizadas em um parecer. Agora a MP tem até março para ser aprovada pelos plenários da Câmara e do Senado.

Leia a entrevista ao Intercept Brasil na íntegra:

Como você observou a escolha da Maria Helena Guimarães, uma pessoa que fazia parte da equipe na época do FHC, para ser secretária executiva do Ministério da Educação de Temer? É o retorno de um antigo norte ideológico?

Daniel Cara: Não tenho dúvidas de que não é um retorno simples. O Mendoncinha quer ter voo próprio. Existe uma disputa instalada entre Democratas e PSDB na gestão do MEC. E é uma disputa de difícil questionamento político.

Você pode falar mais sobre isso?

DC: O Fernando Henrique [Cardoso] deu uma declaração ao Correio Braziliense – dois dias depois almoçou com o Temer –, mas a declaração dele é clara e diz o seguinte: Estamos com o governo, enquanto der pra ficar com o governo.

O que ele quer dizer com isso? Se o Temer não aceitar o PSDB, o PSDB vai fazer voo solo.
O Temer tende a ser impopular, porque ele tem problemas de legitimidade. Só não aceita aquele que não quer ver. Então é bem provável que o PSDB saia desse governo e o DEM continue no barco. Existe aí, também, uma disputa sobre o futuro.

Voltando à Maria Helena, o que seu retorno à liderança do MEC representa?

DC: A Maria Helena representa o retorno à visão do Paulo Renato [Souza, ex-ministro da educação, morto em 2011, ocupou o cargo durante os oito anos de governo FHC]. A revogação do SINAEB [Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica], as medidas provisórias, agora a desconstrução da lógica do Fundeb, são todas medidas para se retomar à desconstrução do sistema de ensino médio integrado. Nem saíram as notas do Enem por escola para os Institutos Federais.

Então há o retorno à política do Fernando Henrique, que é representado pelaMaria Helena Guimarães e pela Maria Inês Fini, que são pessoas elaboradas. São pessoas capazes, com sua leitura própria da área de educação. Uma educação vista de forma diferente da minha, mas elas têm um projeto. Eu só considero um projeto ruim.

Por que um projeto ruim?

DC: Esse tipo de oferta de um ano e meio [de ciclo básico, que está sendo debatido] se aproxima
muito mais do modelo do sistema S, dos cursos de curta duração. Só que, o que faz diferença, em termos econômicos, é o modelo integrado. Porque ele forma elites econômicas de tomada de decisão. Não no sentido de serem os proprietários das empresas, mas de serem os gestores das empresas.

Os IFs têm um papel para o processo de desenvolvimento do país, para as populações de baixa renda. E, com essa MP… Não acredito que os IFs vão ser desconstruídos, até porque eles têm força social, têm qualidade. Mas, eles vão ficar minorados, em termos orçamentários.
A trajetória vai ser pautada pelo Sistema S, pelo Enem e pelas instituições privadas de ensino superior, que vão tentar disputar esse mercado. É um cenário que elas constroem, um cenário extremamente negativo para o desenvolvimento do país e para o desenvolvimento dos próprios alunos. Eu acho que esse é o ponto que, talvez, toque mais a sociedade. Os alunos vão ser prejudicados.

Isso chama a atenção. É uma mudança ideológica do ponto de vista sobre o que a educação significa para o país…

DC: E tem o outro grupo dentro do ministério, do Mendoncinha, que gravita na órbita do DEM. Isso faz com que se exista um conflito. A visão do Mendocinha é uma visão muito menos especializada. É só ver o Roda Viva que ele participoupra ver que não tem a mínima consistência. Ele não é uma pessoa que entende de educação, ele mesmo assume.

Fica evidente, também, quando a primeira audiência pública feita no MEC é com o Alexandre Frota. É bobo, mas é um fato que grita.

Então, com o outro grupo, pelo menos, a conversa é sobre educação…

DC: É uma conversa mais ou menos, porque eles sempre tomaram medidas que evitam a conversa. No debate técnico e franco, eles perdem. Isso foi o que eu vivi na audiência pública do ensino médio. Se fizer uma discussão aberta perguntando para a população, ou mesmo para os parlamentares: Vocês acham correto retirar recursos da educação infantil para dar para o ensino médio? As pessoas vão dizer que não, não vão aceitar.

Com o PSDB você consegue discutir sobre educação, mas só quando eles se propõem a discutir. E é muito pouco que isso acontece.

Essa falta de diálogo ficou evidente no formato como a reforma foi imposta, por medida provisória, não é?

DC: Evitar o debate por meio de um mecanismo legal é uma novidade brasileira. A educação sempre exigiu reformas, que foram amplamente discutidas. A reforma finlandesa e reforma australiana, as mais conhecidas por aqui, levaram anos para serem concluídas. A da Austrália foi uma década.

O debate é fundamental. Caso ele não aconteça, dificilmente a proposta é implementada. Porque vai haver uma resistência dos professores, que não estão convencidos da validade deste tipo de política.

A história do Enem por escola [Institutos Federais ficaram de fora dos resultados] também foi assustadora. Existiu uma falha, mas não dá pra saber se essa falha foi orientada, se foi proposital ou não.

Você acredita que foi proposital?

DC: Veja, os servidores questionaram o MEC: Por que não fizeram consulta às unidades escolares para saber se elas concordavam com a retirada? Quando você toma deliberadamente uma medida para evitar um procedimento que vai abrir espaço para uma divulgação que não é de seu interesse, você faz isso com intenção. Você tomou uma decisão de não divulgar os dados do Enem dos Institutos Federais com educação integrada.

E justamente com o ensino técnico integrado, que era uma bandeira da Dilma…

DC: Exato. Existe aí o ponto, o mais importante. Uma decisão deliberada de desconstruir o que, nesse caso, é uma herança bendita.

E eu falo com a minha experiência de estudante, fui estudante da escola técnica integrada. Fiz de 93 a 95. Logo depois, o FH entra e muda o sistema [na reforma de 1997, o ensino técnico passa a ser obrigatoriamente modular,excluindo-se as disciplinas de formação geral]. Ele cinde a educação profissional da educação regular, o que teve um efeito extremamente danoso, reduzindo a qualidade da educação desses estabelecimentos. Ainda assim, os estabelecimentos sobreviveram.

Com o Tarso, depois com o Haddad, retoma-se um ensino integrado e isso faz uma diferença enorme na vida das pessoas, não é pouca coisa. Eu não teria entrado na USP se não tivesse tido essa experiência. E o que senti entrando nas escolas, visitando ocupações, conversando com os estudantes, é que eles têm muita clareza disso.

Talvez o mais complicado na reforma do ensino médio seja que as pessoas ainda não conseguem visualizar suas aplicações na prática…

DC: Há algumas questões na MP, como ela é muito mal redigida e superficial. A Maria Helena assumiu isso na audiência pública. Permite, por exemplo, que se façam processos de privatização e Parcerias Público-Privadas [PPPs].

O que acontece é que a MP foi construída por um grupo de fundações empresariais, em apoio ao governo federal. O Simon Schwartsman [um dos especialistas em educação que foi referência na criação da MP] fez um estudo que subsidiou a edição da MP, estudo que foi financiado por fundações empresariais. O ICE [Instituto de Co-Responsabilidade pela Educação], doMarcos Magalhães, também participou da formulação desse estudo. E eles tiveram um trabalho intenso junto ao Mendonça Filho para editar essa MP no que se refere a horário integral.

Você acha que a Maria Helena não gostou do resultado?

DC: O calendário de divulgação da MP foi estabelecido pelo Mendoncinha, não por ela. Ela queria ter mais tempo pra divulgar a MP. Mas o Mendoncinha quer se construir como um ator político, ainda mais depois de ser citado pelo Sérgio Machado e pelo Renan Calheirosnaquela conversa que o Renan quer listar os corruptos do Congresso.

Ele é um parlamentar que teve autoria, ou defesas, deleis que tiveram até espaço de discussão, mas é de segundo escalão. Ele nunca foi alguém da tomada de decisão do Congresso. Foi governador assumindo a cadeira porque era vice.

Ele é um soldado e quer se tornar um comandante. Para conseguir isso, precisa de um bandeira. Como se trata de um governo ultraliberal em termos econômicos e ultraconservador em termos morais, a bandeira que ele escolheu foi o ensino médio. Ainda bem que não foi escola sem partido. É ruim, mas podia ser pior. Sempre pode ser pior.

Qual é a principal diferença entre a equipe que hoje manda no MEC e a equipe anterior, do PT?

Resposta: A MP traz um recado claro: na gestão do Mendoncinha, com a Maria Helena, a prioridade vai ser ensino médio.

Qual o problema em priorizar no ensino médio?

DC: O retorno de uma política que não melhorou a qualidade de vida da população brasileira, que foi a focalização no ensino fundamental, uma política que já foi superada. Enquanto o Paulo Renato focou no ensino fundamental, o Mendoncinha e a Maria Helena querem focalizar no ensino médio.

A reforma no Fundeb [Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica] é um problema que está fora do debate e é o efeito mais danoso dessa MP. A partir do ano que vem, na prática, a reforma vai gerar uma concentração de recursos no ensino médio, tirando da educação infantil e do ensino fundamental. Não é que vai investir em uma só etapa, mas vai existir uma focalização na etapa do ensino médio.

Qual o erro em focar apenas em uma etapa?

DC: Quebra-se a lógica de que a educação começa na creche e vai até a pós-graduação, uma proposta que veio da sociedade civil e da academia. Desde 2003, a sociedade civil tinha conseguido convencer os governos Lula e Dilma de que educação precisa ser sistêmica, da creche até a pós graduação. A gente participou ativamente dessa luta. Especialmente na inclusão das creches e na participação financeira do governo federal nas matrículas do ensino básico. O governo Lula não incluiu as creches no fundamento, foi a sociedade civil que incluiu.