O aborto como um direito das mulheres e o entendimento do STF

A primeira turma do STF, em decisão histórica, revogou prisão preventiva de quatro pessoas que estavam presas, denunciadas por crime de aborto assistido com consentimento da gestante, ou seja, aborto cometido por terceiros e não pela própria mulher, mas com a concordância desta, e formação de quadrilha, previstos nos artigos 126 e 288, respectivamente, do código penal.

Por Cristiana Alli Molineiro e Yasmin Issa Neves*

manifestação pela descriminalização do aborto no Chile - Divulgação

O pedido de liberdade foi feito através de Habeas Corpus nº 124.306, que chegou ao STF, após ser negado pelo Tribunal de Justiça responsável no Estado do Rio de Janeiro, bem como pelo Superior Tribunal de Justiça.

Pois bem.

Para que uma prisão preventiva seja decretada, é necessário que estejam presentes os requisitos do artigo 312 do Código de Processo Penal: indícios de autoria, comprovação inicial através de objetos e vestígios de que o crime aconteceu (a chamada materialidade do delito) e também a necessidade de privar a pessoa do convívio social para garantir a ordem pública, a ordem econômica, o andamento do processo criminal e a aplicação da lei.

Ao ler a decisão do ministro Luiz Roberto Barroso no Habeas Corpus, percebe-se que a concessão da liberdade ocorreu porque ele entendeu, assim como os outros ministros da turma, que faltavam os requisitos para as prisões preventivas. Ou seja, os réus não colocaram em risco a sociedade e por isso podem ser processados em liberdade. Foi uma decisão técnica.

Porém, na segunda parte do voto, e é esta que gera a polêmica sobre o aborto, o ministro afirma que há inconstitucionalidade no artigo que criminaliza a conduta. Mas o que é inconstitucionalidade?

A Constituição Federal é a lei maior do nosso país. Nela estão contidos todos os princípios, direitos, deveres e garantias fundamentais resguardadas ao cidadão. Nenhuma norma brasileira pode contrariar o que diz a Constituição Federal. Assim, no entendimento do ministro Barroso, que foi acompanhado pelos outros ministros da turma, o crime de aborto até o terceiro mês da gestação contraria direitos fundamentais que a Constituição Federal assegura às mulheres.

E quais são esses direitos? Segundo o ministro, a proibição do aborto viola, para a mulher (i) a sua autonomia protegida na Constituição Federal pelo princípio da dignidade humana; (ii) o direito à sua integridade física e psíquica; e, (iii) seus direitos sexuais e reprodutivos.


Ministro Luiz Roberto Barroso

 

Ainda nesse voto, que podemos chamar de histórico, o ministro defendeu também que a proibição do aborto vai contra a igualdade de gênero, que só seria alcançada se fosse garantido o direito da mulher em decidir sobre a gravidez, a qual é suportada integralmente por ela e não pelo homem.

Por fim, Barroso, afirma que o crime de aborto endossa a desigualdade social e a discriminação social sobre mulheres pobres, as quais não têm acesso a médicos e clínicas particulares, e não podem contar com um sistema público de saúde que lhe garanta um aborto seguro. O ministro coloca em seu voto algo que toda mulher sabe: o aborto é uma realidade, ele ocorrerá, mas o aborto seguro é um privilégio das abastadas.

Mas essa decisão descriminaliza o aborto?

A descriminalização ocorre quando uma conduta que era considerada crime pela lei deixa de sê-lo, tornando aquele fato uma maneira permitida de agir.

A decisão da primeira turma do STF, embasada no voto do ministro Barroso não descriminaliza o aborto. Isto porque, o Supremo Tribunal Federal é formado por 11 ministros aptos a analisar questões relacionadas à Constituição Federal.

Para julgar o Habeas Corpus, bem como alguns outros recursos, o Supremo Tribunal Federal se divide em turmas que são compostas por cinco de seus onze ministros.

Porém, para que uma lei ou uma norma seja considerada inconstitucional, é necessário que todos os ministros analisem e votem o caso através de ações específicas, como por exemplo, a Ação Direta de Inconstitucionalidade.

Ou seja, essa turma composta por cinco ministros, apesar de ter se mostrado favorável à descriminalização do aborto, ainda não tem poder para descriminalizar a prática de fato.
Se o aborto continua sendo crime, quais as consequências da decisão? Há algo para ser comemorado?

Os quatro réus processados por crime de aborto com consentimento da gestante foram soltos por falta de requisitos. A decisão do STF não descriminaliza o aborto, mas abre um precedente para que, pouco a pouco, os tribunais passem a analisar a matéria em conformidade com a decisão da Turma. Além do mais, amplia o espaço de debate de um tema que há muito fervilha em nossa sociedade e merece a maior atenção por parte dos poderes judiciário e legislativo.

Se temos ministros togados, da nossa suprema corte, entendendo que o aborto é uma realidade na vida das mulheres brasileiras, que sua criminalização só dificulta a conquista da igualdade de gênero, agrava a gritante desigualdade socioeconômica do país e portanto, deveria se apresentar como um direito, podemos acreditar que este é um passo para uma sociedade mais consciente da necessidade de resguardar, com respeito, a vida das mulheres.

Bibliografia

Nucci, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado, 15ª edição. Revista, atualizada e ampliada. Rio de Janeiro: Forense, 2015

Voto do Ministro Barroso na íntegra
http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/HC124306LRB.pdf