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Princípios para uma Pátria da Língua Portuguesa

Criar plataformas, espaços de diálogo e troca, é o primeiro desafio que contribuirá para que possamos ter, em português, um olhar e uma ideia sobre o mundo. Apesar de muitos de nós nos assumirmos como cidadãos do mundo, é ainda muito forte a dimensão do país de que somos originários, da nossa casa, o que condiciona em muito a afirmação de um projeto capaz de ir além da realidade de um país.

Por Carlos Fragateiro*

José Saramago, Chico Buarque, Mia Couto - Reprodução

Nos finais do século 15, inícios de 16, fomos capazes de revelar à Europa que o homem é feito de muitos homens, muitas raças, contribuindo para o aprofundar da visão renascentista e provocando um abalo que forçou a reconstrução e reconfiguração de todo o saber.

Teias e cumplicidades

Esta capacidade de provocar mudanças e de revelar outros mundos faz parte e existe no nosso DNA, o DNA de um país com uma alma que teve o tamanho do mundo e que tem sido transportado através dos tempos pelo espírito da língua portuguesa, fazendo com que as teias criadas a partir das relações, centradas na cultura e no conhecimento, perdurem ao longo dos séculos, dimensões em que hoje teremos que apostar se quisermos reforçar as novas teias e cumplicidades. Uma língua donde se vê o mar e se ouve o seu rumor, como disse Vergílio Ferreira, e que é hoje a nossa maior riqueza, o instrumento privilegiado e estratégico na afirmação de Portugal no contexto europeu e na afirmação da Europa no contexto mundial.

E se Portugal foi nessa altura a primeira aldeia global, o pioneiro da globalização, nada o impede que hoje se assuma como um laboratório do futuro, como um laboratório de diálogo e contaminação de culturas, como um espaço de encontros, de troca e de criação de cumplicidades entre as diferentes culturas e olhares do mundo. Agora já não como potência e império, mas no quadro do universo da língua portuguesa, uma língua com mais de 250 milhões de falantes e com todas as culturas e olhares do mundo.

Língua como Plataforma de Invenção do Futuro

Num mundo dominado pelos conflitos entre as diferentes culturas e religiões, onde é cada vez mais difícil pormo-nos no lugar do outro e fomentar e incentivar o diálogo, ter condições para criar espaços ou plataformas onde se possa juntar na mesma mesa gente de diferentes culturas e religiões a falar sobre o estado do mundo e os futuros possíveis é, necessariamente, uma vantagem estratégica no contexto internacional.

Para além de ser o nosso instrumento privilegiado para produzir pensamento, a força da língua vem do facto, para além de transportar dentro de si muitos dos olhares e culturas do mundo, de ter uma grande facilidade juntar esses olhares e culturas a conversar à mesma mesa. Ser uma língua de diálogo e encontro de mundos é claramente uma vantagem estratégica, num tempo em que parece emergir a tendência para se levantarem mais muros que pontes, no tempo da globalização em que esse diálogo e troca de pontos de vista é fundamental e urgente.

Criar estas plataformas, estes espaços de diálogo e troca, é o primeiro desafio que contribuirá para que possamos ter, em português, um olhar e uma ideia sobre o mundo e perceber de que forma esse olhar, tal como aconteceu no século 16, pode contribuir para ajudar a inventar os futuros possíveis, um mundo diferente.

O conhecimento, seja pensamento ou invenção, não cessa de passar de um lugar mestiço a outro, expondo‐se sempre, não existindo por isso conhecimento puro e estável. O próprio conhecimento é tecido como uma colcha de retalhos, como um manto de Arlequim. Os saberes não se delineiam como continentes cristalinos ou sólidos fortemente definidos, mas como oceanos viscosos. (Michele Serres)
A criação de plataformas, os espaços de diálogo e troca que nos permitam ter em português um olhar e uma ideia sobre o mundo e perceber de que forma esse olhar, tal como aconteceu no século 16, pode contribuir para ajudar a inventar os futuros possíveis, um mundo diferente, só pode concretizar-se se se suportar numa sociedade de cidadãos dum outro tempo, os cidadãos do mundo e da globalização, os cromos da lusofonia como lhe chamamos.
 

Apesar de muitos de nós nos assumirmos como cidadãos do mundo, é ainda muito forte a dimensão do país de que somos originários, da nossa casa, o que condiciona em muito a afirmação dum projecto que vá para além da realidade dum país, como temos podido constar numa realidade muito próxima de nós como é a da cidadania europeia onde existe uma ruptura geracional entre o que poderemos chamar de geração Erasmus, uma geração que hoje já integra um número significativo de cidadãos, alguns já com mais de 40 anos, e a geração da classe política ainda no poder.

Como se pôde constatar no referendo inglês que levou ao Brexit, foram os mais jovens os que votaram pela permanência na União Europeia, mostrando como vivemos um tempo de transição para uma Europa que só terá condições de dar saltos qualitativos e de se concretizar enquanto comunidade quando uma nova geração tomar o poder.

Esta realidade acontece com o universo da língua portuguesa, e, apesar da proximidade da língua potenciar uma ligação mais forte, aliada a toda uma história vivida com cruzamentos e proximidades, tem de haver um esforço para que se interiorize a dimensão do cidadão lusófono, o cidadão que pensa e fala em português. Um processo que vai obrigar a, primeiro que tudo, a que cada um de nós seja capaz de se descentrar, e a dizer como Pessoa que a nossa Pátria é a Língua Portuguesa, ou como o Gabriel o Pensador e o Boss Ac, que:

Sou carioca de Goa, de Angola e da Guiné
Cabo Verde, Moçambique, Timor-Leste e São Tomé
Macau, Portugal mas vim pela Galicia
Que a vida é uma delícia temperada nesse sal
Cabral descobriu muito menos do que eu
Os meus descobrimentos não estão nos museus
Nem nos livros de História mas estão na minha memória
E na dos meus amigos que navegam comigo

Entrar num projeto que atravessa um universo com esta dimensão obriga a que cada um de nós se assuma cidadão da língua, dizendo como Pessoa que a nossa Pátria é a Língua Portuguesa. É sermos capazes de nos descentrarmos, no que penso ser a maior dificuldade desta ideia duma Pátria da Língua Portuguesa, e, para além de portugueses, sermos também brasileiros, angolanos, timorenses, cabo-verdianos, guineenses e moçambicanos.

Cidadãos de Muitos Mundos

O depoimento de Maria de Lourdes Sousa, nos cinquenta anos do regresso de Goa à União Indiana, mostra a multiplicidade de muitos de nós e o facto de vivermos no espaço do entre, nas fronteiras, que é onde a criatividade e as invenções acontecem.

Pertenço a uma geração que até ao processo de descolonização tinha a questão da nacionalidade resolvida. Depois fica-se entre duas pátrias. Há mesmo duas pátrias . Dizia o meu pai que um dia isto tem de voltar a ser indiano, porque é à Índia que nós pertencemos . Quando aconteceu foi uma incógnita. Olhávamos para os indianos e pensávamos afinal somos todos indianos. Mas achávamos que eramos diferentes. E sou. Só que também não era igual às raparigas de Lisboa

Uma dimensão que encontramos num conjunto significativo de cidadãos dos diferentes países de comunidades, a quem chamámos os Cromos da Língua Portuguesa, como, entre muitos outros, Mário Andrade, cartunista de Goa que, para Paulo Varela Gomes, era português, indiano e goês, e ganhou o direito a que não o amarrassem às categorias de identidade nacional com que nos diminuímos como humanos e com as quais tornamos o mundo mais difícil e mais hostil, Dona Berta, a dona da pensão Central em Bissau, B.Leza, compositor e músico de Cabo Verde que compôs mornas e fados, autor da “Sôdade” imortalizada por Cesária Évora que também integra esta lista, Fernando Pessoa e os seus heterónimos, Professor Agostinho da Silva e os Jesuítas Tomás Pereira e António Vieira, o primeiro na China, onde foi conhecido como músico e astrónomo e trabalhou directamente com o Imperador, e o segundo no Brasil que, entre muitos outros, contribuíram para este modo de estar em português no mundo.

A Seleção da Língua Portuguesa

Uma lista a que é importante acrescentar todo um conjunto de personalidades que, tanto na atualidade como na história desta língua, têm dimensão universal e podem ser consideradas a Seleção da Língua Portuguesa: Sérgio Vieira de Mello e a sua luta para salvar o mundo, Jorge Sampaio e o diálogo de civilizações, António Guterres e os refugiados e agora secretário-geral das ONU, Carlos Lopes, coordenador do grupo das migrações, e, mais recentemente, José Graziano da Silva, eleito Diretor-Geral da FAO, todos eles com ligações às Nações Unidas, ou o ex-presidente Lula.

Mas também José Saramago, Zeca Afonso, Xanana Gusmão, António Lobo Antunes, Ximenes Belo, Vasco da Gama, Augusto Boal, Chico Buarque, Óscar Nimeyer, Amália, Mário Soares, Samora Machel, Siza Vieira, Manuel de Oliveira, Amílcar Cabral, Prof. Egas Moniz, Salazar, Marquês de Pombal, Camões, Paula Rego, Humberto Delgado, Mia Couto, António Damásio, Henrique Galvão, José Ramos Horta, Pelé, Eusébio, como se viu com o Campeonato do Mundo da África do Sul, para não falarmos em José Mourinho ou Cristiano Ronaldo. Esta é uma lista feita a partir de um olhar português que tem, naturalmente, de ser completada com os outros olhares e perspectivas.
Todas estas são ou foram personalidades que olharam e olham para o mundo e desenham o seu mapa não só com a perspectiva do lugar onde têm a sua vida, mas a partir de diferentes lugares e perspectivas, no que é uma das grandes riquezas que temos entre mãos.