As névoas e o fogo de Brennand

Depois de incendiar duas dúzias de quadros, Francisco Brennand usa a obra do alemão Caspar David Friedrich como inspiração para nova série.

Por Bruno Albertim

Francisco Brennand - Helder Ferrer

Dinâmo dialético, criação e destruição quem como secreções de um mesmo corpo. Hoje, ao colocar os olhos, pela primeira vez, na nova série do artista plástico Francisco Brennand, na galeria que leva seu nome, em Boa Viagem, pouca gente perceberá. Mas, para que a exposição As névoas de Caspar venha à luz pelas mãos do pintor, vinte outros quadros foram destruídos. Incinerados, pelo autor, não apenas com fogo. Carbonizados, sobretudo, pela disciplina. “Destruí metade do que pintei no último ano. Vou lhe dizer uma coisa: só existe um inimigo de um pintor, que são os maus quadros. Não quero deixar esse atestado de burrice”, diz ele no escritório-ateliê da Várzea de onde raramente sai. Aos 89 anos, Brennand segue revalidando diretrizes de antigos mestres. “Foi Picasso quem disse, como conselho aos jovens artistas, que seus quadros são a soma de muitas destruições”.

Aprovados pelo fogo inquisitorial particular do artista, os quadros da nova série são uma visita-homenagem a um pintor remoto, verbete pouco lembrado no cânone da arte ocidental que, há cerca de 30 anos, mora com mais densidade no pensamento de Brennand. A nova série é pictoricamente catalisada pela obra de Caspar David Friederich (1774 – 1840), um pintor de formação luterana que, no trato de paisagens, subjetivou o ambiente à sua volta com religiosidade e simbolismo.

Assim como Pablo Picasso canibalizou, genialmente, a obra de Velasquez para gerar um dos conjuntos seminais da arte do século 20 com sua versão de As meninas, Brennand se alimenta da obra daquele que foi um dos expoentes do romantismo na Alemanha – um movimento que não apenas reforçou a noção que o mundo teria de indivíduo e individualidade, como é um dos germes do nacionalismo moderno -, para, de certa forma, trair o que lhe consagra como um nos nomes obrigatórios da arte latino-americana.

Como se a natureza tencionasse temores e medos humanos essenciais, a obra de Caspar Friederich parece concordar com um antigo e outrora mais popular aforismo de Nietzsche sobre estética: "Fecha teu olho corpóreo para que possas antes ver tua pintura com o olho do espírito. Então traz para a luz do dia o que viste na escuridão, para que a obra possa repercutir nos outros de fora para dentro". Ao visitar Caspar, Francisco Brennand abandona temporariamente a sensualidade mítica tão estruturadora em sua obra como um certo regionalismo afirmativo pelo qual a arte do Nordeste no século 20, num acento particular e ainda não devidamente estudado do modernismo, se ergueu. O aspecto mais taciturno do alemão parece lhe cativar.

Paisagem

Não é, naturalmente, a primeira vez em que o pintor e escultor pinta paisagens – suas batalhas geograficamente situadas, ou mesmo elementos da natureza como frutas, não deixam de contribuir, até numa estética de alcance etnográfico, para a grande tradição da pintura de paisagem que, na América, tem origem em Pernambuco com Franz Post, Eckhout e outros membros do governo provisório holandês interessado em documentar o Novo Mundo açucareiro. Mas é a primeira vez em que ele, assumindo a névoa da pintura de Caspar, narra isolamento, solidão e reflexão mais íntima em torno de paisagens friamente europeias. Com o calor tropical de zonas mais tórridas de sua obra de fora, em alguns quadros, personagens caminham de costas.

Há outros ineditismos. “Curiosamente, é a primeira vez em que faço uma exposição na galeria que leva meu nome”, diz ele, sobre o espaço mantido pelas filhas Maria Helena e Neném Brennand no Shopping da Decoração, no Pina, onde, a cada final de ano, costuma acontecer uma coletiva em que o artista que batiza o lugar assina obras ao lado de colegas como João Câmara, José Claudio e Roberto Ploeg.

Aos quase 90 anos, de uma lucidez especialmente afiada para derrubar antigos lugares comuns sobre os anos acumulados, Brennand não se olha com a vaidade ilusória dos ególatras nem com a comiseração de quem gosta de se vitimizar com o passar do tempo. Tem, de fato, uma lucidez rara sobre sua condição de humano criador. Por isso, o interesse produtivo por Caspar Friederich: “Olhe isso”, diz ele, sobre a imagem na capa de um livro sobre a obra do romântico alemão reproduzindo um portão soturno de ferro ao lado de árvores em contraluz, “É ou não é sinistro? É terminal. Gloriosamente, eu estou no fim. Sim, é gloriosamente, mas estou no fim. Essa pode ser minha última exposição”.