Uma (Des) Ordem Mundial

Em seu livro Ordem Mundial, Henry Kissinger descreve com erudição e detalhes o passado, vindo até os dias presentes, dos principais países e regiões do planeta. Para ele, nunca como na época atual houve tantas condições e recursos para se estabelecer uma ordem mundial cujo equilíbrio seja dado por uma balança de poder, já que a economia está globalizada e todos os países estão ligados pela comunicação instantânea.

Por Carlos Azevedo*

Henry Kinssiger

“Nossa era busca insistentemente, às vezes de forma desesperada, um conceito de ordem mundial. Uma interdependência sem precedentes traz consigo a ameaça do caos: na disseminação de armas de destruição em massa, na desintegração de Estados, no impacto da degradação ambiental, na persistência de práticas genocidas e na difusão de tecnologias que ameaçam levar os conflitos para além da compreensão ou do controle humanos. Novos métodos para acessar e comunicar informações ligam regiões como nunca antes e projetam acontecimentos globalmente — porém de um modo tal que inibe a reflexão (…) Estaremos nós diante de uma época na qual o futuro será determinado por forças além do controle de qualquer ordem?”

É assim, com muitas perguntas e sem propostas para o futuro que se desenvolve o mais recente livro de Henry Kissinger, Ordem Mundial. Em compensação, descreve com erudição e detalhes o passado, vindo até os dias presentes, dos principais países e regiões do planeta.

Para ele, nunca como na época atual houve tantas condições e recursos para se estabelecer uma ordem mundial cujo equilíbrio seja dado por uma balança de poder, já que a economia está globalizada e todos os países estão ligados pela comunicação instantânea.

O conceito de balança do poder foi experimentado na Europa ocidental durante três séculos. Não surgiu de desígnios generosos, mas da necessidade de paz já que os europeus estavam exaustos, com um quarto de sua população dizimada durante a Guerra dos Trinta Anos. Com o Acordo de Vestfalia, de 1648, os Estados europeus renunciaram a se considerarem cada um o “país verdadeiro”, dono exclusivo da legitimidade. A partir dali foi reconhecida a legitimidade dos vários Estados, considerados independentes e soberanos dentro de seu território, assumindo-se o compromisso de não-intervenção de um país em outro. E buscando a solução de conflitos pela negociação .

Este conceito vestfaliano deixou de existir em 1914 com a irrupção da 1ª. Guerra Mundial. Após a carnificina com 25 milhões de mortos buscou-se o retorno à balança do poder, por meio da Liga das Nações, que, entretanto, não foi capaz de impedir a 2ª. Guerra Mundial. Depois de 1945, promoveu-se outra vez o estabelecimento da ordem mundial segundo o conceito de balança do poder, com a criação da Organização das Nações Unidas, ONU.

A 2ª. Guerra Mundial deixou a Europa esgotada para formular uma nova ordem internacional. Perdera o protagonismo. A balança do poder agora dependia de duas potências de fora, EUA e URSS, empenhadas na Guerra Fria. Os europeus ocidentais procuraram se colocar sobre a proteção nuclear dos EUA. Com o fim da URSS e a queda do Muro de Berlim, a situação muda, a Europa tenta tornar-se independente com a criação da União Européia.

Kissinger pergunta: A Europa emergente se tornará um participante ativo na construção da nova ordem internacional ou suas energias serão consumidas por suas disputas internas? “ A Europa se volta para si mesma justo no momento em que a busca por uma ordem mundial, concebida sobretudo por ela, se vê num momento crítico, e a nova ordem pode vir a dominar qualquer região que não participe de sua formação”.

Os EUA têm um papel paradoxal na ordem mundial: “o país expandiu-se através do continente alegando um Destino Manifesto enquanto negava solenemente quaisquer propósitos imperialistas (…) tornou-se uma superpotência enquanto desmentia qualquer intenção de por em prática uma política de poder…” Messiânico, Thomas Jefferson, um dos Fundadores da nação, escreveu: ‘É impossível não ter consciência de que estamos agindo por toda a humanidade’. Kissinger: “a convicção de que os princípios americanos são universais introduziu um elemento de desafio ao sistema internacional porque implica o fato de que governos que não os pratiquem não seriam plenamente legítimos (…) o que sugere que uma parte significativa do mundo vive numa espécie de situação insatisfatória, num arranjo como que provisório, e que um dia acabará por ser redimida”, isto é alcançará o modo de democracia à imagem e semelhança da dos EUA. “Os EUA Insistiam ardorosamente no fato de que o objetivo de seu esforço não era a expansão territorial no sentido tradicional, mas a disposição, amparada na vontade divina, de disseminar os princípios da liberdade” (…) “Os EUA não eram um país, mas o mecanismo de um plano de Deus e a própria síntese da ordem mundial”, conclui Kissinger. O que resulta numa proposição universalista , numa visão messiânica, semelhante e em oposição à do fundamentalismo islâmico ou ao “reino da harmonia imperial” da China, ou ainda ao maximalismo do comunismo marxista.

Em oposição a universalismo dos EUA, o movimento islâmico também se dispõe a levar sua “verdade universal” a todos os povos. No século VI DC, Maomé unificou as tribos árabes a partir de uma revelação que teria recebido de Deus para a implantação de uma religião universal sob o conceito, que continua presente nas manifestações islâmicas, de expandir-se sempre por meio da luta. No século que se seguiu à morte de Maomé, os exércitos árabes levaram a nova religião à África ocidental, parte da Espanha e da França, até o norte da Índia, Ásia Central e Rússia, partes da China etc. “Atualmente ocorre um período de ressurgência do islamismo (…) o mundo islâmico permanece numa posição de inevitável confronto com o mundo exterior”, diz Kissinger.

A estratégia para a construção desse sistema universal recebeu o nome de jihad , um dever obrigatório para os crentes. Muita coisa mudou desde então, mas a doutrina permanece a mesma no momento atual, seja na Constituição do Estado do Irã ou no grito de guerra de grupos armados no Líbano, Síria, Iraque, Iêmen Afeganistão, Paquistão e de grupos terroristas ativos como o Estado Islâmico.

Diante disso, os EUA têm que agir com muito cuidado em seus movimentos diplomáticos no Oriente Médio. Na Primavera árabe no Egito, por exemplo, embora tenham preferido ficar com a ordem estabelecida, contrariando seu alegado comprometimento de apoiar qualquer sublevação contra regimes não-democráticos, ainda assim, algumas posições tomadas pelos EUA fizeram com que sua aliada Arábia Saudita se perguntasse se ia ser abandonada.

A Arabia Saudita, um reino que não tem nada a ver com a democracia, procura conciliar a aliança com os EUA e a participação em investimentos na economia global, com ortodoxia no campo religioso, apoia e financia o wahabismo, o mais fundamentalista ramo do islã. Incentivou as madrassas, escolas religiosas que pregam o islamismo radical e acabou presa de uma situação contraditória, ameaçada pelo radicalismo que veio das madrassas. O atual fortalecimento do Irã no mundo muçulmano e do xiitismo militante, em guerra contra os sunitas e wahabistas, ameaça desestabilizar o reino. As contradições são intrincadas. Exemplo: a Al Qaeda é sunita, a Arábia Saudita também, no entanto, a primeira decretou jihad contra a segunda.

As guerras contra o Iraque e a Líbia balançaram fortemente as relações de poder no Oriente Médio. A Arabia Saudita sentiu. Para Kissinger, uma convulsão no reino teria profundas repercussões para a economia mundial, para o futuro do mundo islâmico e para a paz mundial. “Se o Irã alcançar poder nuclear a Arabia Saudita também procurará obtê-lo, talvez comprando ogivas do Paquistão”.

A questão da Siria também é muito complexa. Os EUA são contra Assad, mas não têm condições de apoiar a oposição a ele, formada em maior parte pela Al Qaeda e Estado Islâmico. Talvez Síria e Iraque não tenham mais capacidade de se constituir como Estado unificado. Pode ser o fim da divisão territorial imposta por ingleses e franceses depois da 1ª. Guerra Mundial. E a desintegração dos Estados para dar lugar a unidades tribais ou sectárias, facções rivais em conflitos violentos. Partes dos Estados podem cair na anarquia.

No Iraque e na Líbia a situação é caótica, desbordando para os países africanos vizinhos. Zonas sem governo ou sob domínio do Jihad se espalham pelo mundo muçulmano (Líbia, Egito, Iêmen, Gaza, Líbano, Síria, Iraque, Afeganistão, Paquistão, Nigéria, Mali, Sudão e Somália) “Constatamos que uma parte significativa do território mundial e de sua população, se vêem na iminência de ficarem de fora do sistema internacional de Estados”.

Kissinger considera que a questão palestina “perdeu parte de sua urgência, ainda que não sua importância”, mas cedo ou tarde precisará ser enfrentada como elemento essencial à ordem regional. “O conflito entre dois conceitos de ordem mundial está como que cristalizado na questão árabe-palestina”.

O Irã seria o fulcro de toda a tragédia. O fundador da República Islâmica do Irã, o aiatolá Khomeini, declarava que as relações entre as nações deveriam se apoiar em bases religiosas e não sobre princípios do interesse nacional. Rumo à criação de uma ordem mundial genuinamente legítima, o primeiro passo seria a derrubada de todos os governos no mundo muçulmano e sua substituição por um “governo islâmico”. Essa entidade não seria comparável a nenhum outro Estado moderno. Mehdi Bazargan, primeiro-ministro de Khomeini, disse ao The New York Times: ‘o que se queria (…) era um governo do tipo visto nos dez anos de domínio do profeta Maomé e os cinco anos de seu genro, Ali, o primeiro imã xiita” Apesar das profundas divergências, tanto xiitas como sunitas estão unidos quanto à “necessidade de se derrubar a ordem mundial existente”.

Por isso, em 2013, sob o impacto da Primavera Árabe, o aiatolá Ali Khamenei, o Líder Supremo do Irã, sucessor de Khomeini, discursou: ‘O que temos diante dos nossos olhos, hoje, (…) é que o mundo do Islã agora emergiu do segundo plano das equações social e política do mundo, e que se encontra numa posição proeminente e destacada no centro dos acontecimentos mundiais decisivos… Diante do ‘fracasso do comunismo e do liberalismo’ e com a força e a confiança do Ocidente abaladas, o Despertar Islâmico acabaria por ecoar através do mundo.

Para ele, afirma Kissinger, “esse novo despertar de consciência estava abrindo a porta para uma revolução religiosa global que iria finalmente vencer a esmagadora influência dos EUA e seus aliados e pôr um fim a três séculos de supremacia do Ocidente”. E cita mais Khamenei: ‘O objetivo final não pode ser nada menos que criar uma brilhante civilização islâmica’.

Para Kissinger, o Irã não quer verdadeiramente a paz. Por isso, nutre extrema desconfiança do acordo nuclear que está sendo discutido entre o Irã e as potências 5+1 (os membros do Conselho de Segurança da ONU, EUA, Inglaterra, França, Russia, China, mais a Alemanha). Para ele os 5+1 vêm cedendo sucessivamente e o Irã ganhando espaço e confiança para desenvolver energia nuclear alegando objetivos pacíficos, mas de modo a que venha ficar em condição de em poucos meses produzir várias bombas nucleares.

Em resumo, defende que há uma incompatibilidade irremovível entre o conceito vestfaliano de pluralismo e o conceito muçulmano de uma ordem religiosa mundial única, eliminando os Estados nacionais.

Apesar desse alto grau de tensão, o centro da atenção da política externa dos EUA não está ali. Retirando sua ênfase do Oriente Médio, os EUA acabam de se afirmar como potência da Ásia-Pacífico. São quase 50 países, todos armados e vivendo um equilíbrio delicado. Destaque para o Japão, que está se preparando para obter armas nucleares e voltar a ser um país “normal”, isto é, rompendo seu compromisso de não fazer mais guerra, sob a alegação de que é ameaçadora a cena política regional. Quanto à Índia, continua seu caminho diferenciado, seguindo a tradição firmada pelo líder histórico Jawaharlal Nehru, de defesa prioritária de seus interesses, sem assumir alinhamentos automáticos. Tem a segunda maior população muçulmana do mundo, só inferior à da Indonésia e sua influência geopolítica se estende até o Oriente Médio. Conta com um arsenal de armas nucleares e com uma Marinha poderosa. Procura o equilíbrio com a China, Japão e sudeste asiático, e cuida-se das ameaças do vizinho muçulmano Paquistão, também nuclearizado, fazendo contrapeso com os Estados Unidos.

A China rejeita a noção de que a ordem internacional seja fomentada pela disseminação da democracia liberal e de que a comunidade internacional tenha a obrigação de efetuar tal discriminação, e que essa percepção dos direitos humanos venha a ser implantada pela ação internacional. Deng Xiao Ping definiu como os chineses vêm a polêmica: ‘Na realidade, a soberania nacional é muito mais importante do que os direitos humanos, mas o Grupo dos Sete (ou Oito) frequentemente viola a soberania dos países pobres, fracos, do Terceiro Mundo. Seu discurso sobre direitos humanos, liberdade e democracia é concebido apenas para preservar os interesses dos países fortes e ricos (…) que buscam a hegemonia e praticam a política de poder’.

Kisssinger considera inevitável que uma potência em expansão invada os espaços da potência estabelecida. Como escapar da inevitabilidade de um conflito da China com os EUA? A política lançada pela Secretária de Estado Hillary Clinton em 2009, o “Pivô para o Leste da Ásia”, é vista pela China como o prenúncio de uma demonstração de força destinada a mantê-la permanentemente em posição secundária. Do lado americano o medo é que a China abale a preeminência dos EUA e ambicione a hegemonia.

Para muitos chineses, os EUA, como superpotência, já passaram do auge de seu poder. Mas seus dirigentes reconhecem que os EUA conservarão sua capacidade de liderança num futuro próximo. O fato é que nenhum dos dois países sozinho está em condições de repetir o tipo de liderança que os EUA tiveram logo após o fim da Guerra Fria.

Sobre a Guerra do Vietnã, da qual participou como Secretário de Segurança Nacional e principal estrategista do presidente Richard Nixon, Kissinger tem um ponto de vista oficialista engajado. Não atribui a vitória aos combatentes vietnamitas, mas principalmente a fatores internos, a perda do consenso nacional. O envolvimento no Vietnã se desenvolve ao mesmo tempo que parte da sociedade dos EUA começa a por em duvida a validade das intervenções americanas.

Em 1951, Truman manda conselheiros militares para ajudar a combater as guerrilhas no Vietnã do Sul. Em 1954, , Eisenhower manda conselheiros militares. Em 1962, Kennedy autorizou forças de combate auxiliares. Lyndoln Johnson ampliou as tropas até 500 mil. Ele estava convencido de que sem a resistência americana todo o Sudeste Asiático cairia sob controle comunista. O que, aliás, era o princípio motivador da Guerra Fria em toda parte, para os americanos, a Teoria do Dominó.

Para ele, subitamente a opinião dos americanos mudou e tirou apoio ao trabalho que vinha sendo feito por uma equipe competente em Washington. Foram “acusados de uma loucura quase criminosa e de fraude deliberada. O que havia começado como um debate razoável sobre viabilidade e estratégica transformou-se em manifestações de rua, injúria e violência”. Reconhece que a estratégia usada entre as superpotências durante a Guerra Fria de ações em escalada com intervalos para negociações não era adequada para uma guerra assimétrica no interior da Ásia. “O principal obstáculo residia na dificuldade de os americanos compreenderem a maneira de pensar adotada por Hanoi”. Para os líderes de Hanói, “duramente temperados pela guerra, tendo passado sua vidas lutando pela vitória, o compromisso equivalia à derrota…” Mas o elemento perturbador foram as manifestações públicas promovidas pelos estudantes americanos. Era uma “raiva institucionalizada e um trauma nacional. Manifestações públicas atingiram dimensões que obrigaram o presidente Johnson – que seguia descrevendo a guerra como a defesa de um povo livre contra o avanço do totalitarismo — a restringir suas aparições publicas(…) a bases militares.

O establhisment acabou por cristalizar a posição de “acabar com a guerra” por meio de uma retirada unilateral em troca apenas da libertação dos prisioneiros de guerra. Nixon conseguiu completar a retirada e alcançar um acordo que ele achava (e Kissinger também) que iria garantir aos sul-vietnamitas uma oportunidade de moldar seu próprio destino. Mas o Congresso, desgastado, restringiu drasticamente a ajuda ao Sul em 1973 e em 1975 a eliminou completamente. A queda do Vietnã do Sul levou à queda dos governos do Laos e do Camboja. “Os EUA tinham perdido sua primeira guerra e também o fio a partir do qual se desenrolava seu conceito de ordem no mundo”
Enquanto o país buscava acalmar as divisões internas e uma renovação política, outros acontecimentos reforçaram o sentimento de perda da aura de invencibilidade: a vitória da revolução no Irã e o episódio da ocupação da embaixada americana em Teerã, com os funcionários mantidos presos por mais de 400 dias, tendo fracassado a missão militar de resgate enviada pelo presidente Jimmy Carter. Quase ao mesmo tempo, dezembro de 1979, a União Soviética promovia uma intervenção militar no Afeganistão. Mas a década que se seguiu foi de recuperação dos EUA e de enfraquecimento da URSS. Com a repentina falência da União Soviética chegavam ao fim a bipolaridade e a Guerra Fria. Começava a hegemonia norte-americana. “Uma ordem mundial pacífica iria agora se desenvolver”, idealizou Kissinger.

Coube a George H. W. Bush, o pai, administrar a hegemonia, eliminando os resíduos da Guerra Fria e anunciando uma ordem internacional baseada no império da lei. Assim, dentro da lei, com apoio das Nações Unidas, promoveu a Guerra do Golfo contra o Iraque, que invadira o Kuwait. Bush invocou uma comunidade da liberdade: ‘uma comunidade moral unida em sua dedicação aos ideais da liberdade’. Ela ‘forjaria para todas as nações uma nova ordem mundial bem mais estável e segura do que qualquer outra que já conhecemos’. Segundo Bush, os EUA e seus aliados passariam ‘de uma política de contenção para ir além, aplicando uma política de engajamento ativo’. Seu sucessor, Bill Clinton, esclareceu: ‘Nosso propósito primeiro deve ser o de expandir e fortalecer a comunidade mundial das democracias baseadas em economia de mercado’. Segundo essa visão, ‘os princípios da liberdade política e econômica eram universais’. Clinton idealizava: ‘seria um mundo de democracias vigorosas que cooperariam umas com as outras e viveriam em paz’.

Quando os EUA foram propor a aplicação desses princípios à República Popular da China, a resposta foi ríspida: as relações com os EUA só podiam ser conduzidas sobre uma base geoestratégica, não com base num progresso da China rumo a uma liberalização política.

Esse conceito, chamado de “ampliação” encontrou um adversário mais militante. O jihadismo que também procurava “ampliar”, espalhando sua mensagem do império universal do Islã. Atacava os valores e instituições ocidentais, colocando os EUA como obstáculo principal. Era o opressor dos muçulmanos. O atentado às torres gêmeas em 11/09/2001 concretizou essa postura. Uma nova era de confronto estava começando: A guerra do Afeganistão e guerra do Iraque vieram em seguida. Dessas duas guerras os EUA se retiraram.

Havia um novo desafio: como estabelecer a ordem internacional quando os principais adversários são organizações não estatais que não defendem nenhum território específico e rejeitam os princípios estabelecidos de legitimidade?

O Afeganistão, conhecido como “túmulo de impérios” porque sempre acabou derrotando os exércitos invasores, como o da Inglaterra e o da União Soviética, não ofereceu grande dificuldade às tropas dos EUA, inicialmente. O Talibã logo foi derrotado. Mas depois as guerrilhas (os jihadistas agora estavam contra) impediram os EUA de “reconstruir o Afeganistão” como uma democracia do tipo ocidental. Essas intenções traduziam um completo desconhecimento da realidade do Afeganistão, onde nunca houve um Estado central, mas é composto por tribos em mútuos conflitos o tempo todo. Em 2008 Barack Obama se elege presidente e decide reforçar a guerra no Afeganistão enviando mais 30 mil soldados enquanto procura acabar a guerra que chamou de “burra” do Iraque. A retirada das tropas da OTAN se deu em 2014 e nada assegura que a situação do Afeganistão mudou. Para Kissinger há grande chance de o Afeganistão arrastar de novo o mundo a um estado de guerra.

Em 2002 , o governo dos EUA divulgou o documento ‘Estratégia de Segurança Nacional’ afirmando: ‘as grandes lutas do século XX’ demonstraram que existe ‘um único modelo sustentável para o sucesso das nações: liberdade, democracia e livre iniciativa’. O núcleo desse documento , que veio a ser chamado de ‘Agenda da Liberdade’ era a transformação do Iraque de um dos Estados mais repressivos do Oriente Médio numa democracia interpartidária, o que viria por sua vez a inspirar uma transformação democrática regional. Kissinger diz que apoiou a decisão de promover uma mudança do regime do Iraque. Ele elogia a decisão e firmeza de George Bush filho, mas tentar implementar uma democracia por meio de uma ocupação militar numa parte do mundo no qual esses valores não têm raízes históricas foi, na sua opinião, um desafio grande demais para a sociedade americana e também para a iraquiana.

Hoje o Iraque funciona como um campo de batalha central numa disputa sectária regional, seu governo tendendo para o Irã, elementos de sua população sunita empenhados numa oposição militar ao governo, membros de ambos os lados desse cisma sectário oferecendo apoio a esforços jihadistas em luta na Síria e o grupo terrorista ISIL (Estado Islâmico) procurando construir um califado em metade de seu território.

A situação “clama por uma resposta coordenada e enérgica; caso contrário (o jihadismo) se espalhará como uma metástase”.

Ou seja, Kissinger também não tem uma proposta.

Fazendo um balanço, lembra que nas cinco últimas guerras “quentes” dos EUA (Coréia, Vietnã, a primeira Guerra do Golfo, Iraque e Afeganistão) somente a primeira Guerra do Golfo atingiu seus objetivos. Nas outras, deu empate ou retirada unilateral, quer dizer, derrota.
A guerra do futuro.

No capítulo 9 Kissinger incursiona pelo fator tecnologia presente na disputa pela hegemonia. Ao analisar a tendência de ampliação do numero de países detentores de armas nucleares alerta para a relativização do poder dissuasório das grandes potências nucleares e o aumento da imprevisibilidade quanto ao uso de arma nuclear por algum país. “Qualquer ampliação da difusão de armas nucleares para além da situação existente multiplica as possibilidades de uma confrontação (…) Acabará por afetar o equilíbrio entre superpotências nucleares”. E adiante: “não se deve permitir que as armas nucleares se tornem armas convencionais. Nesse momento crítico, a ordem internacional exigirá um entendimento entre os países nucleares mais poderosos para que insistam na não proliferação, ou a ordem será imposta pelas calamidades de uma guerra nuclear”.

Mas hoje há um fator que revoluciona a ordem mundial, o advento da internet. Não bastasse a mudança tecnológica radical que representa, ela ocorre num ritmo inteiramente novo. Encurta os espaços de tempo entre as ações, tornando-as quase instantâneas.

“Indivíduos munidos de smartphones (cerca de 1 bilhão de pessoas) agora dispõem de informação e capacidade analítica que estão além do alcance do que muitos órgãos de inteligência tinham na geração passada. Grande corporações acumulando e monitorando os dados trocados por esses indivíduos dispõem de uma capacidade de influência e de vigilância que supera a de muitos Estados contemporâneos e mesmo de potências mais tradicionais…”

E adiante: “Antes da era da informática, o poderio das nações ainda podia ser aferido por meio de uma combinação de efetivos humanos, equipamento, geografia, economia e moral. Havia uma clara distinção entre períodos de paz e de guerra…” Com a internet, esses limites estão todos diluídos: “um lap top pode produzir um fato de consequências globais. Um agente solitário (…) pode ter acesso ao ciberespaço para desativar ou potencialmente destruir infraestruturas vitais, agindo a partir de uma posição de quase completo anonimato. Redes elétricas podem ser levadas a sofrer pane e usinas de energia desligadas a partir de ações fora do território de uma nação”. Cita o ataque botnet da Rússia dirigido contra a Estônia em 2007 que paralisou as comunicações do país durante dias. O comandante do Cibercomando dos EUA previu: “a próxima guerra começará no ciberespaço”.

Kissinger levanta ainda uma questão crucial, a da obtenção do conhecimento pelas redes sociais. “Na era da internet”, ele escreve, “a ordem mundial tem sido muitas vezes equiparada à proposição de que se as pessoas dispõem da capacidade de acessar e trocar livremente as informações do mundo, o impulso humano natural para a liberdade acabará por se enraizar e se realizar, e a história começará a avançar como se estivesse no piloto automático”. Ele ressalva que o alcance da mente se divide em três componentes: informação, conhecimento e sabedoria. A internet centra seu foco no domínio da informação. “Entretanto, um excesso de informação pode, paradoxalmente, vir a inibir a aquisição de conhecimento e empurrar a sabedoria para ainda mais longe do que se encontrava anteriormente.” E cita o poeta T.S. Elliot:

Onde está a vida que perdemos vivendo?
Onde está a sabedoria que perdemos no conhecimento?
Onde está o conhecimento que perdemos na informação?

Livro:
ORDEM MUNDIAL
Henry Kissinger
Ano 2014
427 páginas
OBJETIVA

*Carlos Azevedo é jornalista, editor e escritor, trabalhou em jornais como Estado de S. Paulo, Folha de S.Paulo e Diário da Noite e nas revistas O Cruzeiro, Quatro Rodas, Caros Amigos e Retrato do Brasil. Foi um dos fundadores do jornal Movimento e da revista Realidade e é autor do livro Cicatriz de Reportagem, reunindo suas melhores reportagens.