Clóvis Moura: raça e classe são dimensões da luta pela liberdade

Clóvis Moura foi um estudioso da situação dos negros no Brasil ao longo do conjunto da história de nosso país. A luta contra o racismo cabe a todos os brasileiros, e não apenas aos de pele escura que sofem as mazelas do preconceito, defendia ele. É uma questão democrática que aprofunda a luta de classes anticapitalista.

Por José Carlos Ruy

Clóvis Moura relatou, e demonstrou com farta documentação, como a resistência dos escravos contra a opressão que sofriam foi a principal dimensão da luta de classes desde o início da colonização.

Quando ele iniciou sua pesquisa, em 1949, muitos historiadores importantes, inclusive alguns de tinham influência marxissta, tentaram convencê-lo da inexistência, ou pequena relevância, das rebeliões escravas no Brasil. Argumentavam que não passavam de “choques culturais” entre populações quase selvagens (os negros sequestrados na África) que se insurgiam contra os hábitos daqueles que, tendo vindo da Europa, seriam “superiores” e mais “civilizados”.

Clóvis Moura era ainda um jovem pesquisador quando começou o exame de documentos no Arquivo Público da Bahia e, com base neles, demonstrou a verdade histórica da rebeldia negra no Brasil. Ela ocorreu em todo o território nacional, durante todo o período de existência daquele regime iníquo. Rebeldia que se manifestou sob todas as formas de luta possíveis: fugas, corpo mole e paralisações do trabalho, levantes e assassinatos de feitores e senhores, suicídios, fugas individuais ou coletivas, formação de quilombos (que houve em todo o território brasileiro), rebeliões urbanas e agrárias, participação em movimentos de rebeldia das outras camadas da população, etc, etc, etc.

O livro clássico escrito por Clóvis Moura demonstra já em seu título a verdade da luta escrava que a elite e os escritores ligados a ele tentavam negar: Rebeliões da Senzala. Nele a luta de classes ocupa o centro da análise histórica. A amplitude com que a rebeldia escrava aparece ali destrói a tese de que ela seria marginal ao curso principal do processo histórico. Ao contrário, ela se manifestou de forma múltipla e teve a marca inequívoca da luta de classes. Rebeliões da Senzala demonstrou como a luta dos escravos foi a expressão principal do antagonismo de classes no Brasil escravista, condicionando inclusive a organização política e administrativa e a formação do Estado brasileiro. A necessidade de defesa contra ameaças internas e externas levou à criação de normas e instituições próprias como a mobilização de bandeiras e expedições repressivas contra índios e quilombos, e também à obrigatoriedade dos proprietários armarem milícias para a repressão de rebeliões escravas.

Rebeliões da Senzala revelou ainda o limite intransponível das revoluções brasileiras: as elites proprietárias, em seus próprios movimentos de rebeldia, temiam mobilizar a massa de escravos, ex-escravos, negros forros, índios aculturados e seus mestiços, que formavam o povo brasileiro. É o limite que explica o pequeno sucesso, ou mesmo o fracasso, da maior parte dos movimentos de rebeldia de facções das classes dominantes. E também o apregoado espírito brasileiro de conciliação – isto é, a capacidade da elite acertar-se entre si, resolver suas dissidências deixando o povo à margem. E sobre o qual caiu sempre o peso da repressão depois que os de cima fizeram a conciliação.

Os estudos realizados por Clóvis Moura não focaram apenas o periodo escravista de nossa história, mas também a situação a que os ex-escravos se vieram relegados depois da Abolição ocorrida em 1888. Postos à margem ou fora do sistema produtivo (que foi ocupado principalmente por imigrantes europeus, e brancos, cuja vinda cresceu depois de 1888) os antigos escravos e seus descendentes foram expulsos para os piores, mais miseráveis e mal remunerados lugares no sistema produtivo brasileiro, sendo obrigados a morar e viver nos piores lugares, insalubres, precários, violentos e distantes dos centros urbanos. Encheram as favelas e, depois, as periferias brasileiras, onde a maior parte de seus descendentes são obrigados a viver até hoje, mais de um século após a Abolição. E submetidos a uma lógica racista cruel que criminaliza sua vida, tratada quase sempre à bala por policiais que tem o objetivo de derrotar o “inimigo interno” – o povo pobre, negro e mestiço, que está na base da sociedade brasileira.

Clóvis Moura ajudou os brasileiros a entenderem a função do racismo no domínio de classes e também do papel importante que cabe ao proletariado na luta contra ele. Em uma nação como o Brasil, onde mais dois terços da população é formado por descendentes de negros, índios e seus mestiços; onde o racismo e o domínio de classe se confundem e são partes íntimas da mesma realidade cruel da dominação de uma arte da nação sobre a maioria do povo, que é justificada por ideias falsas de superioridade racial.

A denúncia militante do racismo, feita por Clóvis Moura, tem em sua base a compreensão de que o domínio de classe e da luta de classes só podem corresponder realmente à realidade social do país se incorporar à dimensão classista também a dimensão étnica.

Esta sua contribuição fundamental era – é! – baseada no marxismo que ele ajudou a renovar e a aprofundar. Marxismo que distingue seu pensamento e o diferencia daqueles que, enfatizando apenas o aspecto racial da dominação, encaram a luta antirracista como tarefa própria dos brasileiros que trazem na cor da pelo a marca da herança malsã do escravismo. E que não compreendem que cabe a todos os homens, independente da cor de sua pele, o combate ao preconceito racial e às ideias de superioridade dos seres humanos de pele clara.