Governo, mídia e Judiciário constroem narrativa contra o Bolsa Família

Na semana passada, o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) do governo Michel Temer anunciou que fez o "maior pente-fino da história do Bolsa Família" e disse ter detectado uma série de irregularidades que levaram ao cancelamento imediato de quase meio milhão de benefícios. Sem mais detalhes, outros 654 mil foram suspensos por três meses, obrigando os beneficiários a procurar as prefeituras, verdadeiras gestoras do programa, para "regularizar a situação".

Por Cintia Alves, Jornal GGN

Walquíria Leão Rego - Reprodução

Foi com uma mudança no método de cruzamento de dados dos beneficiários que o governo Temer conseguiu reduzir o Bolsa Família em 8% em apenas um mês.

Ao atingir 1,1 milhão de assistidos pelo programa de transferência condicionada de renda criado por Lula, o governo diz ter gerado uma economia anual de R$ 2,4 bilhões. O volume pode dobrar nos primeiros meses de 2017, pois o MDS já projetou que o corte pode atingir outros 1,4 milhão de beneficiários, com o mesmo discurso de combate a fraudes avalizado por figuras como Gilmar Mendes.

A velha mídia, que tradicionalmente trata o Bolsa Família como uma política para fins eleitorais, celebrou a decisão do governo Temer de mudar a base de dados.

Em editorial publicado na semana passada, o Estadão apontou que "um pente-fino era indispensável diante das evidências de que os governos petistas, por criminosa negligência ou simples incompetência, haviam perdido o controle do programa" que garantia ao "ao lulopetismo um curral eleitoral de 40 milhões de votos".

Para a pesquisadora e professora da Unicamp Walquíria Leão Rego, autora do livro "Vozes do Bolsa Família", o governo Temer – "ilegítimo"- e setores do Judiciário e da mídia "estão construindo uma narrativa para pregar que o Bolsa Família era a compra de votos institucionalizada do PT" e, assim, desqualificar o programa e esvaziá-lo pouco a pouco.

A decisão de auditar o Bolsa Família mensalmente, para a pesquisadora, é uma das mais prejudiciais. Isso porque a renda dos beneficiários é muito volátil. Nos finais de ano ou em meses recheados de datas comerciais, quando cresce a oferta de empregos temporários, algumas famílias correm o risco de ter o benefício cortado porque o MDS não analisará o quadro social e econômico como um todo. Por isso, o antigo MDS fazia análises anuais, contando ainda com ajuda do Ministério Público e do Tribunal de Contas da União.

O governo Temer, por outro lado, decidiu substituir o cruzamento de várias informações cedidas pelos ministérios que atuavam no programa sob as gestões do PT pelo uso de seis bases distintas: o Cadastro geral de Empregos e Desempregados, o Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas, o Instituto Nacional de Seguro Social, o Sistema Integrado de Administração de Recursos Humanos, o Sistema de Controle de Óbitos e a Relação Anual de informações Sociais.

Confira a entrevista, a entrevista de Walquíria Leão Rego, realizada na última quarta (16).

GGN – Dentro de sua pesquisa acadêmica sobre o Bolsa Família é possível dizer que havia completo descontrole do acompanhamento do programa?

Walquiria Leão Rego – Não, não existia descontrole nenhum. Isso é propaganda barata, ideológica e persecutória. Os controles sempre foram muito bem feitos, tanto é que o programa ganhou muitos prêmios exatamente pela boa gestão, que inclui o cruzamento de dados entre os ministérios da Saúde, Educação, Trabalho e Desenvolvimento Social. Havia, o tempo todo, mecanismos de controle dos procedimentos, inclusive independentes e internacionais. Isso [de dizer que há descontrole proposital] é desinformação e má-fé.

O governo Dilma tirou milhares de pessoas do Bolsa Família várias vezes. Nunca foi noticiado. Esse tipo de notícia, agora, tem outro objetivo, o de desqualificar o programa. Serve para dar vasão ao preconceito da classe média, para quem o Estadão é uma espécie oráculo.

Não se trata de corte para controle de gastos públicos. Se você ver os valores que as pessoas ganham, você vai ver que eles não estão preocupados com economia. Ao invés de falarem de dívida pública, vão falar do Bolsa Família? Tem gente que foi cortado do programa porque estava ganhando quatro reais a mais! É fazer, como sempre fez a imprensa brasileira, o festejo dos ataques aos pobres.

O que eles querem mesmo é acabar com o programa e assim satisfazer a sanha escravocata da classe média e da alta elite econômica brasileira, dizendo que é um programa, como diz Gilmar Mendes, de compra de votos permanente. É um modo de desqualificar os pobres, que é uma prática normal, constante e recorrente da imprensa.

Estão construindo uma narrativa para pregar que o Bolsa Família era a compra de votos institucionalizada do PT.

GGN – Seria possível cortar tantos benefícios, mês a mês, sem alterar o método de cruzamento de dados para adotar um modelo com seis bases distintas, que deixa de lado o Cadastro Único ou mesmo informações trocadas entre ministérios da Saúde, Educação e Desenvolvimento Social?

WLR – Acho que não, porque aí não cortariam uma pessoa porque ela está ganhando 4 reais a mais [do que a renda mínima exigida pelo programa]. [Quando isso acontece] Você chama a pessoa e pede para ela explicar as informações. E isso fácil é isso, basta acionar os CRAS (Centro de Referência em Assistência Social), ou usar a tecnologia no controle. O MDS era impressionantemente atento a esse controle.

Isso sem contar que, às vezes, a mudança na renda é sazonal. A pessoa pode estar, naquele momento, atingindo a renda de 400 reais per capita porque conseguiu um emprego temporário. Porque pelas regras, se você tem carteira assinada, por exemplo, eles cortam o benefício. É só verificar no Ministério do Trabalho se ele está na ativa. Se a renda é formalizada e permanente, o próprio sistema impede.

Esse risco de cortar o benefício injustamente porque a pessoa arruma um emprego temporário, de final de ano, por exemplo, é permanente, e por isso a ministra Tereza Campello tinha o cuidado de monitorar o programa pensando nesses aspectos.

Em minha pesquisa, eu visitei lugares onde as pessoas diziam que tinham arrumado um emprego num hotel, para fazer faxina em alta temporada, com carteira assinada, sim, mas só por dois meses. O MDS tinha que estar preparado para esse tipo de situação.

O problema é que eles querem esvaziar o programa com o discurso de fraude.

GGN – Se estivéssemos falando de um governo que defende o aprimoramento do programa, e não o estabelecimento de critérios que aparentemente o esvaziam, o que poderia ser melhorado?

WLR – Além de aperfeiçoar constantemente os mecanismos de controle, acho que uma das principais questões que não deu tempo de o programa enfrentar, porque é uma questão complexa, é a geração de políticas culturais e educacionais específicas para as mulheres do Bolsa Família. Porque você ser excluida durante anos, desde o seu nascimento, sendo que sua mãe já foi uma excluída do sistema de educação e saúde…

Há um descompasso entre as necessidades da sociedade atual e essas milhares de pessoas que, durante séculos, foram abandonados pelo Estado basileiro. Não adianta fazer reformas educacionais sem olhar para essas gerações com déficits. Não dá para achar que qualquer programa de educação vai abarcá-las, atingí-las. Tem de ter algo mais específico.

A questão é como fazer esses programas para pessoas que vieram de uma geração que nunca teve acesso à educação. Essa população foi abandonada em tudo. O que sobrou para ela de acesso à cultura são as novelas da Globo.

É questão de reunir os pensadores desses temas para saber como vamos oferecer uma educação e atualização cultural para quem dificilmente teve acesso à educação e cultura. Isso o programa não teve tempo de fazer, e explica em muito a tentativa de acabar com o Bolsa. Porque imagina o que acontece quando você educa 40 milhões de pessoas. Vejo que aí tem um veto ideológico e político da própria sociedade e da visão elitista que ela tem sobre si mesma.