O golpe é na renda e nas pessoas

Valorização do piso nacional teve efeitos positivos para toda a economia, mas corre o risco de ser interrompida. Se a política desejada pelo governo Temer valesse desde 1988, mínimo hoje seria R$ 400.

Por Vitor Nuzzi e Juliana Afonso

Michel Temer - Lula Marques

Os trabalhadores no setor canavieiro da zona da mata, em Pernambuco, fecharam em outubro acordo que incluiu aumento de 9,39%, pouco acima do INPC acumulado (9,15%). O salário mensal passou a R$ 944. Eles garantiram ainda cesta básica no valor de R$ 40. Um bom acordo, avaliam, apontando o momento favorável para os preços do açúcar e do álcool.

Outra cláusula considerada importante pela categoria – aproximadamente 70 mil pessoas – é a do chamado piso de garantia, de R$ 16 acima do valor do salário mínimo a ser fixado para janeiro de 2017. O mínimo é referência nos acordos do setor, observa o presidente da Federação dos Trabalhadores e Trabalhadoras Assalariados Rurais (Fetaepe) e diretor de Política Salarial da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado (Fetape), Gilvan José Antunis.

“O salário mínimo é uma referência a partir de janeiro”, diz Gilvan, lembrando do mês em que o piso nacional é reajustado. “A política de valorização na gestão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ajudou bastante os canavieiros. Antes, o governo não via o salário mínimo como importante para o país”, afirma o dirigente. Um possível fim dessa política, fixada a partir de meados dos anos 2000, preo­cupa os trabalhadores. “Estamos preocupadíssimos, principalmente com a supressão de direitos.”

Entre esses direitos, está a Previdência, área em que o governo pretende mexer. O que pode causar impacto direto na vida do trabalhador rural. “Eu mesmo comecei com 12 anos de idade”, lembra Gilvan, que iniciou no corte de cana em 1985, sendo registrado como aprendiz. Com 44 anos e 31 de contribuição, ele poderia daqui a quatro requerer sua aposentadoria por tempo de serviço. Agora, receia ter de trabalhar mais tempo.

Já se sabe que o salário mínimo não terá aumento real (acima da inflação) no ano que vem. O ganho real corresponderia ao Produto Interno Bruto (PIB) de 2015, que caiu. Os canavieiros têm garantidos R$ 16 a mais do que for fixado em janeiro, mas temem o fim da política. As centrais sindicais também. O salário mínimo está no foco do ajuste, materializado na Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 241, aprovado na Câmara e agora em tramitação no Senado, com o número 55, com previsão de segunda e definitiva votação em 13 de dezembro – mesma data do ­AI-5, em 1968.

Marchas

Ao sair de uma reunião com investidores em Nova York, também em outubro, o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles­, negou que a PEC irá prejudicar o reajuste do salário mínimo. Só se o teto de gasto público for desrespeitado, afirmou. Em tese, há uma lei – 13.152, de 2015 – que estabelece uma política para o mínimo até 2019. A regra de reajuste inclui o INPC do ano anterior mais o PIB de dois anos antes. Para 2017, por exemplo, considera-se a inflação deste ano, que deve ficar abaixo de 8%, mais o PIB de 2015, que caiu 3,8%. Estima-se que o mínimo ficará em torno de R$ 946. É o valor que consta do projeto da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO).

Quem também se preocupa, e muito, com uma possível mudança nas regras do salário mínimo é o casal Ana Damasceno­ Rocha, de 71 anos, e Ulisses Almeida ­Rocha, 74, moradores na zona rural de Jacinto, no Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais. Eles conseguiram tudo o que têm trabalhando na roça, plantando feijão, milho, mandioca. Cada um recebe uma aposentadoria e, juntos, alcançam uma renda de R$ 1.760 por mês, imprescindível para pagar as despesas e viver com tranquilidade. “Hoje eu não tô plantando mais porque a seca tá difícil. Ano passado eu perdi, este ano eu perdi. Eu tô comprando ração pros porco, porque eles não podem ficar sem comida”, lamenta Ulisses, que ainda mantém uma horta e alguns animais.

O casal passou por uma situação complicada ainda no início deste ano, após o fim do período de chuvas, quando o córrego que passava ao lado da casa onde moram secou. Ulisses teve de ir à prefeitura e pedir que um caminhão-pipa levasse água. O serviço acontece de 15 em 15 dias.

Os dois concordam que o benefício é fundamental, mas afirmam que se ele diminuir, podem voltar a trabalhar, apesar da seca, ou pedir ajuda para os filhos que, “graças a Deus, tão tudo encaminhado”, como repete Ana. Hoje, com a aposentadoria, o casal paga as despesas da casa e compra alimentos, vestuário e remédios. “Tomo remédio para controlar a pressão alta. É caro. Tem que saber gastar pra poder viver”, diz.

Criado em 1940, pelo Decreto-lei 2.162, o salário mínimo sempre provocou reações extremadas na política e na economia. Em 1954, custou o cargo de João Goulart, que como ministro do Trabalho de Getúlio Vargas propôs aumento de 100% no piso. Em artigo de 2014, o economista João Sicsú afirmou que de sua criação até 1964 três presidentes defenderam o ganho real: Getúlio, Juscelino­ Kubitschek e Jango. O mínimo atingiu um dos valores mais altos pouco antes do golpe. Na ditadura perdeu em torno de 50% do seu valor em termos reais. Parte das conquistas sociais do atual período, segundo ele, deve-se à atual política de recuperação do salário mínimo.

Essa política é resultado de mobilização conjunta das centrais, que em 2004 fizeram uma primeira marcha a Brasília. Outras se repetiriam nos anos seguintes. O piso nacional foi sendo reajustado e virou objeto de duas leis, em 2011 (12.382) e a de 2015 (13.152). De acordo com o Dieese, de 2003 a 2016 o mínimo foi reajustado em 340%, enquanto a inflação do período ficou acumulada em 148,34%, resultando em aumento real de 77,18%.

No parecer à PEC 241, o relator na Câmara, deputado Darcísio Perondi (PMDB-RS), incluiu entre o que chamou de “aprimoramentos” ao artigo 104 a “vedação a medidas que impliquem reajuste de despesa obrigatória acima da variação da inflação, observado o atendimento do inciso IV do art. 7º da Constituição Federal – fixação do salário mínimo”. Este é o item VIII do artigo 104 da PEC.

Para o analista político Marcos Verlaine, do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), a PEC pode não atingir o salário mínimo diretamente, mas afetará por outras vias. “Vai haver uma pressão grande para mudar a política. Já há intenção clara (de não ter aumento real). A própria campanha do Aécio (Neves, do PSDB) sinalizou para isso. Não há uma grita agora porque não houve crescimento do PIB”, observa.

O assessor parlamentar considera que as regras de aumento do mínimo constituíram uma política pública fundamental, com impacto nas pensões e nos benefícios da Previdência – 80% dos benefícios correspondem a um salário mínimo, segundo ele – e também importante para distribuição de renda. Verlaine chama a atenção para impactos negativos da proposta. “A aprovação da PEC impõe necessariamente a aprovação de uma reforma da Previdência de cunho fiscalista”, afirma. “Adia a concessão do benefício, a Previdência acumula mais e paga por menos tempo. Vai fazer mais caixa. A reforma vai obrigar todo mundo a ir para a previdência complementar.”

No radar do governo Temer também há uma possível desvinculação entre o mínimo e os benefícios previdenciários. Se isso acontecer, significa que num futuro breve os benefícios de Ana e Ulisses deixarão de acompanhar os reajustes do piso e terão seus rendimentos achatados. Os sinais são claros. Durante uma palestra no Rio de Janeiro, o ex-presidente do Banco Central Arminio Fraga afirmou que a PEC se tornaria insustentável sem uma reforma da Previdência “muito boa”.


Desmonte

Para o economista e professor Marcio Pochmann, presidente da Fundação Perseu Abramo, está em curso um “desmonte do acordo político estabelecido pela Constituição” de 1988, que estabelecia no gasto social (incluindo educação, saúde, previdência e outros itens) um elemento importante da dinâmica econômica. Passou de 13,5% do PIB, em 1985, para 23% atualmente. “O que temos hoje é um golpe de Estado em que a maioria do Congresso vai aprovar um conjunto de reformas que estavam estancadas.”

O que mais cresceu desde a Constituição, lembra Pochmann, não foi o gasto social, mas o pagamento de juros – de 1,8% para 8% a 9% do PIB. “Não tem travas ao gasto financeiro. É um gasto que não gera emprego nem crescimento”, afirma. “Gasto social é dinheiro na mão das pessoas. Podemos dizer que hoje quase 50% do PIB brasileiro está atrelado ao gasto social”, aponta.

Não se trata de um projeto de desenvolvimento, mas de redivisão do fundo público, alimentando o rentismo, acrescenta Pochmann. “O salário mínimo foi o principal elemento da elevação da renda na base da pirâmide social. Foi o que permitiu que os ganhos de produtividade não se descolassem dos salários.” Também evitou o aumento da desigualdade e fez crescer a participação dos salários na renda nacional. “Obviamente, isso está comprometido para os próximos anos.”

Para o economista José Silvestre, coordenador de Relações Sindicais do Dieese, o significado da PEC é maior do que um simples congelamento de despesas primárias da União. “Por trás disso, uma das dimensões é o papel do Estado brasileiro”, afirma. “A questão central é a dívida dos juros. Vamos discutir uma PEC da dívida pública e dos juros. Isso (241) é uma indicação do que vai ser o Estado brasileiro daqui para a frente.”

Ele destaca ofensivas do governo no sentido da privatização, como no caso do pré-sal. “Os recursos gerados com a privatização não são para investimentos. Você está transferindo ativos para estrangeiros. O governo não fez nenhuma medida, nem sequer tentou uma reforma tributária, taxar grandes fortunas.”

Consequências

Silvestre observa que a política de valorização do salário mínimo propiciou, além da melhoria na distribuição de renda, impactos nos pisos salariais das categorias e em outras políticas públicas, como os benefícios de prestação continuada, para o sistema da seguridade. “E, principalmente, para a grande maioria dos municípios brasileiros. Foi também um estímulo para a atividade econômica, para o comércio, setores industriais cuja produção tem baixo valor unitário. Teve esse efeito irradiador. Foram impactos não apenas na questão da renda, mas da atividade econômica.”

Números divulgados nas últimas semanas, após a edição da PEC, demonstraram efeitos nocivos da proposta governista. Com a curiosidade de terem sido contestados pelas próprias instituições, em um dos casos em órgão do próprio governo. O economista Bráulio Borges, pesquisador associado da Fundação Getúlio Vargas (FGV), por exemplo, fez simulação segundo a qual o salário mínimo poderia ser de R$ 400, menos da metade do valor atual, se a regra da 241 existisse desde 1998.

A FGV divulgou nota afirmando que a análise do pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre) “não reflete a opinião da instituição”, considerando “impraticável” associar a política do salário mínimo à PEC.

Caso mais rumoroso aconteceu no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), vinculado ao Ministério do Planejamento. Nota técnica assinada por dois pesquisadores, Fabiola Sulpino Vieira e Rodrigo Benevides, apontou possibilidade de perdas de até R$ 743 bilhões na área de saúde, em 20 anos, em consequência da PEC 241, que partiria de um pressuposto equivocado de que os recursos públicos para o setor já estão em níveis adequados.

Imediatamente, o presidente do instituto, Ernesto Lozardo, divulgou nota contestando o estudo e manifestando apoio à PEC, o que causou estranheza por se tratar de um órgão de pesquisa. Dias depois, Fabiola deixou o cargo de coordenadora de Estudos e Pesquisas de Saúde na Diretoria de Estudos e Políticas Sociais.

Oficialmente, pediu exoneração. A Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) criticou o episódio. “O pedido de exoneração da servidora não é apenas uma posição pessoal, como tenta indicar a nota da presidência do Ipea. É, em verdade, um grito de alerta sobre os rumos que temas tão caros à Abrasco, com a liberdade de expressão e o espaço do debate público, vêm tomando no país.”

“Já derramei meu suor”

Vilma Rosa de Lacerda, 61 anos, mostra com orgulho a cozinha da sua casa. “As coisinhas que eu tenho foram tiradas com esse salarinho. Geladeira, fogão, bicama.” O “salarinho” a que se refere é o dinheiro da aposentadoria rural, que garante a ela – e a cerca de 7 milhões de brasileiros – R$ 880 por mês.

Moradora de Rubim, no vale do Jequitinhonha, norte de Minas Gerais, Vilma passou a vida inteira trabalhando na roça. Plantar, colher, fazer farinha e vender os produtos na cidade eram atividades diárias, que assumiu ainda jovem. A aposentadoria veio aos 55, após anos de contribuição ao sindicato. “Eu saí da farinha, saí de tudo né? Agora com meu beneficinho, sofrendo, mas economizando, dá pra mim vencer”, afirma.

Hoje, o valor da aposentadoria dos trabalhadores rurais é de um salário mínimo, o que faz com que esse benefício seja parte considerável dos repasses da Previdência: só no ano passado, esse valor chegou a R$ 91 bilhões. O atual governo estudou a possibilidade de desvincular a aposentadoria do mínimo com o argumento de que esse elo faz os benefícios subirem acima da inflação, impedindo a reforma da Previdência. O Palácio do Planalto diz ter abandonado essa proposta devido à possibilidade de questionamentos na Justiça.

Outro fantasma que ronda a aposentadoria rural é a PEC 55. Se a proposta prejudicar o reajuste do salário mínimo, o repasse aos pequenos produtores aposentados também será prejudicado. O recém-eleito prefeito de Rubim, Alencar Souto de Oliveira (DEM), diz que a questão é controversa.

“Na verdade, houve uma queda grande dos recursos, e por isso as instituições estão sucateadas. Mas não sei se isso (a PEC) é necessário ou não. Eu tenho uma visão dupla”, diz. Para Alencar, se o reajuste do salário mínimo for abaixo da inflação, o poder de compra das pessoas será afetado. E, consequentemente, a arrecadação do município e a qualidade de vida da população também.

Vilma controla o dinheiro que recebe na ponta do lápis. E sozinha. “Hoje eu que controlo ele. Não vou pegar meu dinheirinho e gastar ele pra no final do mês eu não ter nem um quilo de carne pra comer. Eu tenho que pôr meu braço onde eu alcanço”, ensina. Ela se divorciou recentemente e a aposentadoria lhe deu independência financeira. “Eu trabalhei muito puxando cabo de enxada. E cê sabe, mulher é mais sofrida ainda, porque homem não dá dinheiro a mulher. Eles acha que mulher num precisa”, conta Vilma, que costurava para ganhar um extra e poder comprar produtos de higiene pessoal, como desodorante, e roupas íntimas.

Ainda que a aposentadoria rural seja vista como o maior componente do chamado déficit da Previdência, ela é uma política que assegura ao pequeno produtor a manutenção das suas necessidades básicas. Sem o benefício, Vilma, que também sofre com problemas de pressão e colesterol, precisaria trabalhar para se manter. “Isso é meu. Eu já derramei meu suor lá, ó. Eu tô recebendo agora”. (Juliana Afonso)