Trump e os eixos da política externa dos Estados Unidos

A eleições presidenciais dos EUA revelam muito mais a derrota de um modelo de sociedade decadente do que propriamente uma reação a um governo aparentemente progressista, como o de Barak Obama.

Por Gustavo Guerreiro*

Donald Trump - Foto: Michael Vadon

É preocupante quando um candidato como Donald Trump, pautado pela xenofobia, misoginia, racismo e intolerância religiosa alcança uma vitória dessa magnitude. Há elementos que nos dão pistas sobre a relação entre a política externa estadunidense e o avanço da direita fascista, não apenas no espaço doméstico, mas em âmbito global.

O racismo e a xenofobia nos EUA foram forjados durante séculos, mas a devastação causada por décadas de conflagrações militares do Oriente Médio, lançadas por uma necessidade ocidental de hegemonia de combustível fóssil, transformou aquela sociedade em um caldeirão borbulhante.

Acrescente-se que grande parte desse fenômeno vem na esteira da desregulamentação financeira neoliberal, que culminou em 2008 na pior crise econômica da história. A globalização permite o livre fluxo de dinheiro e ódio – mas não das pessoas cujas vidas foram destruídas pelos conflitos militares precipitados pelo Ocidente para garantir lucros e consumo privilegiado dentro das fronteiras nacionais.

Limitarei essa discussão à política externa, porque exprime continuidades. No plano interno, Obama teve o êxito de aprovar um projeto de saúde universal – frontalmente atacado pela direita estadunidense – e fazer o debate sobre a desigualdade social daquele país. Em linhas gerais (excluindo aspectos pontuais como a reaproximação de Cuba), a política externa do democrata Obama não significou um avanço em relação a Bush, mas uma sofisticação do expansionismo imperialista, sobretudo dos mecanismos de inteligência, da diplomacia e da intervenção militar. A Agência Central de Inteligência (CIA)  e a Agência Nacional de Segurança (NSA) assumem protagonismo inédito. Principal campo de batalha em que os EUA estão envolvidos até o pescoço, o conflito na Síria ganha em dramaticidade e impacto geopolítico da guerra do Iraque e com componentes distintos: o uso de forças mercenárias e a criação de um "inimigo" para legitimar ações da OTAN naquele território.

A política externa dos governos democratas foi extremamente agressiva. Ucrânia e a Síria são dois teatros de guerra em que Obama está derrotado. Além disso, há a ameaça da guerra nuclear com a Rússia, manobras militares no mar da Coreia, o Comando dos Estados Unidos para a África(Africom) – como reação à presença chinesa na África- , a tentativa de expandir a Otan para Atlântico Sul, a reativação da IV Frota e os golpes em Honduras, Paraguai, Argentina, Venezuela e Brasil. Todas essas decisões passavam pela Secretária de Estado Hillary Clinton. Obama foi mais belicista e expansionista do que Bush. Mas, como disse antes, os mecanismos de intervenção são muito mais sofisticados tentando dar a impressão de se tratarem de acontecimentos legítimos.

Hillary pretendia continuar a política de Obama para mudança de regime em países não hostis à Rússia (como Iraque, Líbia, Ucrânia e Síria). Donald Trump não, pretende focar nas políticas de segurança nacional dos EUA. Trump diz que a Guerra Fria acabou, mas Hillary asseverava: "a Rússia deve pagar um preço". Seu discurso era claro: lutar contra a Rússia é a principal prioridade dos EUA. Sem histórico na velha política ianque, Trump só pode ser avaliado por suas declarações sobre o assunto. Ele tem consistentemente afirmado – e é o primeiro a fazê-lo desde o fim da Guerra Fria – que os EUA devem concentrar seu foco em apenas um inimigo: o jihadismo. Não sabemos se isso também se converterá nas chamadas “guerras preventivas” de Bush. A incerteza é o principal parâmetro para medir Trump.

Quando Trump diz que vai parar de derrubar regimes estrangeiros e aniquilar o Estado Islâmico, não o faz para ganhar votos, ele verbaliza o intenso confronto dentro da estrutura do poder estadunidense. Existe uma disputa contra o establishment no chamado "estado profundo" (burocracias militares, de inteligência e diplomáticas) por importantes segmentos que se opõem ao partidarismo das instituições, como o FBI, a CIA e o próprio Exército. Trump representa um bloco de poder composto por personalidades como o Chefe do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas, General Joseph Dunford, um grupo de potentados da oligarquia financeira de Wall Street, e consagrados estrategistas como Henry Kissinger e Brzezinski, que não compartilham a visão de Hillary nesse momento de reorganização hegemônica global com ascensão de China e Rússia. A maior crítica desse grupo recai sobre a chamada "privatização da guerra", que poderia fugir do controle do poder público, a “personalização da política de Estado” e a denúncia de que o país financia o Estado Islâmico, o que constitui “uma séria ameaça às instituições”.

Em relação à América Latina, o novo presidente não representará nenhuma mudança política substancial. Continuará prevalecendo um modelo hegemônico que vê a região como uma prioridade de "política interna". Nas palavras do atual secretário de Estado, John Kerry, continuamos a ser o “quintal” dos EUA. Embora qualquer prognóstico possa permanecer no campo especulativo, a tendência é de que os EUA manterão esforços para controlar os recursos naturais na região, especialmente água, petróleo e gás, com a dissuasiva presença militar para inibir a formação de governos populares e não alinhados.