Belchior: Antes do Fim

Não posso dizer que tive uma paixão arrebatadora pela MPB, talvez um “amor”, daqueles que a gente encontra na vida, que cresce ao seu lado, mas que se revela forte quando se compreende que não seria a mesma pessoa sem entender o contexto que retratavam aquelas músicas. Significava o que vivi “e tudo que aconteceu comigo”.

Por Eliz Brandão

Belchior - Divulgação

Duas narrativas me ligam a Belchior. Uma com o homem comum e outra com um dos seus discos. O único dele que ouvi durante muitos anos seguidos.

Nasci em 1975, tempos difíceis, mas culturalmente muito férteis. Com pouco dinheiro após a separação dos meus pais, minha casa tinha apenas uma vitrola e alguns poucos discos, que minha mãe conseguiu levar com ela. E assim, consequentemente, eles eram ouvidos por todos da casa, minha mãe e seus quatro filhos.

Elis Regina, Gal Costa, Chico Buarque, se me lembro bem, Clara Nunes, eram os discos que tínhamos, e um outro que era muito especial: Alucinação, do Belchior, de 1976. Para mim ele é o retrato da época, da pobreza financeira e da riqueza cultural. Todas as dez músicas do disco são perfeitas. Me acompanharam pela infância e adolescência, antes de conhecer o rock e me apaixonar pelo som da guitarra, da bateria e do baixo.

Mas voltando à “Alucinação”, gosto de todas as músicas, tenho um sentimento profundo pelas letras e pela melodia, dramática. Talvez por isso seja difícil escolher apenas UMA música, depende do dia, do sentimento, do tempo. Eliminando as mais conhecidas por mim e pelo resto do mundo, escolheria neste Especial do Belchior, "Antes do Fim". Ela tem menos de um minuto, apenas dois parágrafos, mas não é a menos importante. Ela encerra o disco com chave de ouro.

Apesar da música começar com uma fala alegre, desejando “amor e tudo mais…” Aparentemente ela é uma mensagem, um recado para quem vivera em tempos de censura rigorosa, mas que se caminha para o fim. Os acordes do violão e da gaita dão um toque forte. A letra diz “o canto foi aprovado”, como se tivesse comemorado a aceitação do disco pelos carrascos da ditadura, mas termina com outro sentido: “não tome cuidado, não tome cuidado comigo”, “eu não sou perigoso”, “- Viver é que é o grande perigo”.

Ouça: 

Belchior, o homem comum

Tinha apenas 14 anos, era ainda muito jovem, mas já havia passado por vários desafios na vida, o bastante para se sentir adulta e ser considerada fumante. Saíra para comprar cigarro, no subúrbio, na zona sul de São Paulo.

Entrei no primeiro “boteco” que vi, só tinha dinheiro para um cigarro mesmo e… lá estava ele, sentado no fundo do bar escuro, o bigode, o formato do rosto e a cabeleira farta apontava, era ele. Estranho era o local, a ausência de companhia, mas do alto de minha inocência, fiquei ali imóvel. Reparei cada detalhe: um cinzeiro cheio à sua frente, um copinho com uma água transparente, talvez uma cachaça, intacta, e nenhuma garrafa por perto. Uma fumaça branca ou cinza saindo entre os dedos, um charuto, um cigarro? Era isso, cigarro foi o que fui comprar, recordei depois de alguns segundos.

Um rapaz do outro lado do balcão disse: “Sim, é ele, diz o que quer ou cai fora!”. Despertei, pedi o cigarro, peguei, acendi e virei as costas, fui embora, olhando pro chão e arrependida por não ser mais corajosa, poderia ter contado “o que eu vivi e tudo que aconteceu comigo”, mas sei lá como seria recebida.

Me lembrei agora com mais intensidade deste episódio, quando o seu nome e suas obras estão sendo relançadas pelos seus 70 anos de vida. Tantas histórias outras temos para contar. Vivemos um período de medo do retrocesso, tal como tempos passados, tal como retratados por este importante artista brasileiro. Mas uma coisa que levo da arte do Belchior, que “não quero lhe falar meu grande amor, De coisas que aprendi nos discos”.