Como nossos pais

Trago ainda na memória a forte impressão provocada em mim pela primeira vez que prestei atenção à letra de Como nossos pais, de Belchior. Ouvi a canção em uma loja de discos na Praça da Sé, em São Paulo, no final dos anos 70.

Por José Carlos Ruy

Elis Regina e Belchior - Divulgação

Já a ouvira antes, em circunstância, digamos, incidental… Ali, na Praça da Sé, tantos anos passados, ouvi-a na voz de Eliz Regina, que a gravou do LP Alucinação (1976).

Ainda não era jornalista – trabalhava aplicando questionários de pesquisa de opinião. E estava nos primeiros anos de minha militância partidária, ligado ao movimento negro pela atuação no Instituto Brasileiro de Estudos Africanistas dirigido pelo historiador Clóvis Moura.

No momento em que ouvi a canção não sei para onde ia, o que estava fazendo por ali. Não tem importância. O que importa é a sensação profunda em mim que os versos Que apesar de termos / Feito tudo, tudo, tudo / Tudo o que fizemos / Ainda somos os mesmos / E vivemos / Como os nossos pais provocaram.

Foi uma impressão vívida: a canção referia-se a nós que sendo jovens, pensávamos ter feito muito, tínhamos lutado para mudar hábitos e o jeito de viver e encarar a vida. Eram ainda repercussões da revolução do final dos anos 60 e a grande transformação que veio com ela.

Mas não era uma mudança completa, como a canção obrigava a pensar e nós repetíamos, ainda, velhos hábitos que se pensava ter superado.

Foi um forte vislumbre, em meu pensamento, desta verdade dialética: tudo muda mas a mudança nem sempre é completa e assim, muito do passado permanece sob novas formas. Ainda somos os mesmos / E vivemos / Como os nossos pais.

Há um tom pessimista na canção. Há perigo na esquina / Eles venceram e o sinal / Está fechado pra nós / Que somos jovens. Mas o registro é fortemente otimista e a favor da vida e do progresso. Fala em abraçar meu irmão / E beijar minha menina na rua / É que se fez o meu lábio / O meu braço e a minha voz.

Diz ainda:

Vejo vir vindo no vento / O cheiro da nova estação / E eu sinto tudo na ferida viva / Do meu coração.

E termina com uma exortação:

Mas é você / Que ama o passado / E que não vê / Que o novo sempre vem.

Não é uma canção revolucionária no sentido convencional, e sua letra é um comentário sobre a vida que se vivia. Tudo era dominado pela ditadura militar, o sufoco era geral, e aquele canto apontava uma brecha de esperança. Com o registro esperto de que a mudança viria (o novo sempre vem!). Poderia não ser aquele novo desejado por todos mas, certamente, seria novo!

Poesia para ser cantada é literatura, reconheceu a Academia Sueca ao escolher Bob Dylan para o Nobel deste ano. Belchior sempre soube disso, como deixou registrado em canções semelhantes a Como nossos pais!

Ouça a canção: