Arruda Bastos: Chapeuzinho Vermelho, a moagem e o sítio Soledade

“A moagem da Soledade demonstrou que podemos conviver com pessoas de posições ideológicas diferentes, do vermelho ao azul, da direita à esquerda e do alvinegro ao tricolor. O que realmente importa é a convivência da família e dos amigos”.

Por *Arruda Bastos

Arruda Bastos

Quando um escritor começa a ser lido, ele recebe diariamente solicitação da família e dos amigos, em primeiro lugar, bem como de outros leitores para escrever sobre diversos temas. Hoje, quando saía para um encontro familiar no sítio Soledade, dos queridos primos Airton e Cármen Silvia, no município de Mulungu, acompanhado da minha amada esposa Marcilia, minha irmã Regina e meu cunhado Henrique, fui solicitado por todos eles para escrever sobre o dia que já se prenunciava como maravilhoso. O tempo estava firme e o céu lindo, típico do nosso querido Ceará.

Como escrevi no livro “Semeando Cultura”, a mais recente antologia da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores (SOBRAMES), o escritor tanto é iluminado como ilumina e necessita de um estímulo impulsionador para sua arte. Pensando sobre isso, qual seria o estímulo para escrever sobre esse maravilhoso dia? A moagem, o carinho dos anfitriões e amigos ou a beleza do Sítio Soledade? Qualquer um dos mencionados seria inspiração mais que suficientes para escrever não só uma crônica, mas com certeza um livro. Entretanto, já estávamos chegando à meia noite e nada de me decidir. Resolvi, então, para ajudar na decisão, rever as fotos postadas no Facebook pela minha irmã Regina. Observei que nas dezenas de fotos só uma pessoa usava vermelho, camisa e boné, e que, por coincidência, era eu. Resolvi, então, falar deste Chapeuzinho Vermelho, da moagem e do Sítio Soledade, tudo de uma só vez. Foi a minha inspiração.

Todos nós, quando crianças, ouvimos a história da Chapeuzinho Vermelho com sua Vovozinha, o Lobo Mau e sua fatídica passagem na floresta. Lembrei da música infantil Pela estrada a fora, de Braguinha, composta em 1940.

"Pela estrada a fora, eu vou bem sozinha
Levar esses doces para a vovozinha
Ela mora longe, o caminho é deserto
E o lobo mau passeia aqui por perto
Mas à tardinha, ao sol poente
Junto à mamãezinha dormirei contente ".

Era assim o meu espírito na manhã daquele sábado: alegre como uma criança que ia fazer algo muito bom. Mas por que nas fotos eu estava destoando dos outros e me destacava de vermelho? A explicação que no momento me veio à mente e de que, sabendo da ideologia de esquerda do nosso anfitrião e, principalmente, do seu irmão e meu primo Arino, a indumentária seria para homenageá-los. Mas, qualquer que fosse o motivo, mesmo que de forma inconsciente, eu estava tal e qual o conhecido Chapeuzinho Vermelho dos contos infantis.

Durante os quase cento e trinta quilômetros de viagem, íamos recordando fatos da nossa infância e principalmente do nosso querido pai, César Bastos, ou, como ele era conhecido no meio dos sobrinhos e da família, o tio Braga. Lembramos também dos nossos inesquecíveis tios Lino e Enedina, pais do anfitrião do grande dia. Recordamos que, por um período, meu pai, quando bem jovem e recém-chegado da sua terra natal, Saboeiro, morou no sítio Soledade. Se o destino não tivesse dado uma mãozinha, nós não teríamos nascido, pois meu pai não conheceria minha amada mãe, Lourdes, que morava na cidade próxima de Baturité. Seria o fim e não estaríamos aqui a escrever essas mal traçadas linhas.

Agora, já 1 hora da madrugada, e eu deitado ainda vidrado na tela do meu celular digitando compulsivamente essa minha crônica. Dei uma pausa, respirei fundo e voltei a ver as fotos no Face. O interessante é que passei de imediato a sentir na boca o doce sabor da moagem do Sítio Soledade. O caldo de cana, o mel engarrafado na hora nos recipientes previamente preparados e com o selo da propriedade, a rapadura e, principalmente, o ponto alto daquele momento: o gostoso alfenim, com todo o seu ritual, o pau para capturar na tina e depois a arte de, literalmente, por a mão na goma e fazer as manobras necessárias para a sua confecção.

Divino o sabor oriundo da nossa tradição centenária dos engenhos de cana da nossa região. Melhor ainda o reencontro com os primos, familiares, amigos, as fotos e a prosa descompromissada do dia. Sem esquecer a mesa de café, as iguarias, o almoço e os deliciosos quitutes da nossa prendada anfitriã Cármen Silvia. Melhor do que isso, só dois disso!

Mas e o Chapeuzinho Vermelho? Será que ele entrou na minha prosa como Pilatos entrou no credo? Para solucionar esse enigma, precisei levantar-me, deixar Marcilia dormindo sozinha e aproveitar minha inspiração ainda turbinada pelo açúcar oriundo da moagem da Soledade para, revisitando as fotos do dia, encontrar o desfecho para essa minha narrativa.

As imagens do primo José Airles em sua nova fase, romântico e carinhoso, a linda família de Carmen e Airton, a alegria do encontro com os tios Eurico e Beatriz, o carinho de primos de todas as descendências, os amigos, a interação das gerações e o sorriso das crianças inocentes me deram a certeza de que não estamos sozinhos e que existe um Deus de bondade que protege a todos.

Já chegando às altas horas da madrugada, digo que o amor, o respeito, a tolerância, a amizade, a cordialidade e a fraternidade devem reger a nossa vida. Não pode ser a descriminação de cor, raça, credo, opção sexual ou ideologia política que deve ditar o nosso comportamento. Não devemos querer que tudo seja do jeito que a gente quer, devemos aceitar o outro do jeito que ele é.

Por fim, já ao amanhecer, resolvi o meu dilema: a moagem da Soledade demonstrou que podemos conviver com pessoas de posições ideológicas diferentes, do vermelho ao azul, da direita à esquerda e do alvinegro ao tricolor. O que realmente importa é a convivência da família e dos amigos. Para concluir, fica a convocação para que meu companheiro e primo Arino não me deixe sozinho de vermelho nos próximos anos. Com essa indireta, encerro essa crônica já me convidando para a próxima moagem, em 2017, no Sítio Soledade. Que Deus ilumine a todos!

*Arruda Bastos é médico, professor universitário, escritor, radialista, ex-secretário da saúde do Ceará, um dos coordenadores do Movimento “Médicos pela Democracia” e um apaixonado pela família e pela igualdade entre os povos.

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