Maria Bitarello: Vamos falar sobre o que ninguém quer falar

Um homem te diz que o filho é uma punição. Porque você deu. Sentiu tesão. A gravidez será o castigo. Filho, o castigo vivo. Será essa a mensagem por trás dos contra o aborto?

Por Maria Bitarello*, Outras Palavras

Edgar Degas, Jovens Espartanas 1860 - Edgar Degas, Jovens Espartanas 1860

Nas artes, mulheres com tesão costumam se dar mal. Sem trocadilho. Na literatura, no cinema, na música. Veja os romances do século XIX, obcecados pela infidelidade. Neles, as mulheres sexualmente vivas ou morrem ou enlouquecem (e depois morrem). Madame Bovary, Anna Karenina, O crime do padre Amaro, a lista é longa. No filme Ninfomaníaca, de Lars von Trier, a personagem pratica uma miríade de atividades sexuais com dezenas de homens, mas o que fecha a tampa do caixão não são as preliminares da dupla penetração e, sim, o abandono do lar pela ninfa que, em nome do prazer, larga a família com criança e tudo pra perseguir o gozo. O que de pior uma mulher pode fazer além de abandonar a prole? Matá-la, talvez. Já quando um homem abandona a cria nem fofoca de bairro vira mais. É vida que segue. E o que dizer da pobre e maldita Geni, do Chico Buarque? Se fu. Claro. Deu pra geral e levou pedradas e cusparadas.

No início do mês, milhares de mulheres polonesas convocaram greve geral e foram às ruas protestar contra um projeto de lei que pretendia banir o aborto. Prisão pra mulher que abortar; pro médico também. O mesmo esquema que Trump defende nos Estados Unidos. Mas essas mulheres polonesas conseguiram barrar o projeto de lei. Maravilhoso. Então, vamos pegar carona: o assunto aqui é aborto. Melhor ir avisando. Ninguém quer falar nisso. E os ânimos andam muito sensíveis. Mas eu quero falar. E apenas das gravidezes interrompidas intencionalmente. Porque o número de mulheres que você conhece pessoalmente que já fez pelo menos um aborto na vida, do qual você talvez não saiba, é muito maior do que se imagina. E é preciso falar sobre isso. Sem tabu. Sem embaraço. Sem medo. Sobretudo sem culpa.

Vislumbremos o cenário. Primeiro você engravida inoportunamente. Aí tem a descoberta, o desespero, depois a euforia, aí a dúvida, o comunicado, a busca por informações sobre suas opções. Uma consulta à(o) médica(o), quiçá até religiosa(o). Começam os julgamentos. Falta de clareza nas informações. Uma decisão é imperativa. Contempla-se o aborto. Começa a busca por uma clínica clandestina. Logo vem o medo por não saber se ela é segura. E se é isso mesmo que você quer. E ainda tem o milagre de fazer brotar alguns mil reais em dinheiro vivo da noite pro dia. Afinal, o relógio não para. Cada dia a mais é um dia a mais. E se você não tomar nenhuma decisão, decidido estará por você. Aí volta a dúvida. Ter um filho com esse cara? Um filho agora? É mais covarde ter ou tirar? E se eu não amar a criança? Será que vou engravidar de novo na vida? Será que quero, algum dia, ter um filho? Será que vou ficar pra titia? E se eu não tirar? E se? E se? E se?

A decisão é ingrata. Você está só. Só mesmo. De qualquer lado que se olhe, perde-se algo. E no fim do dia e da vida, é você, mulher, que vai ter que conviver com os efeitos dessa decisão. Engravidar pode ser muito simples, depende da sua fertilidade. É só não evitar que ela vem. Bem, naturalmente, um cara precisa colaborar. Se a gravidez não for oportuna, me parece muito natural e humano que o mundo ao redor lhe ofereça um poço de carinho, compreensão e suporte. Que você tenha garantia de segurança, caso opte pelo término da gravidez. Que familiares e amigos apoiem sua decisão. Que a(o) médica(o) te oriente, independente da opinião pessoal dela(e). Que o estado reconheça a legitimidade dessa escolha. Que moral e religião alheias fiquem bem longe de você. Que esteja claro, límpido e transparente que nessa aventura da gravidez você não chegou ali sozinha. E que você possa conversar a respeito. Porque ninguém quer fazer um aborto. Ele é a última medida. Uma medida muito séria.

Mas sabemos que não é assim. Ainda não, pelo menos. Você é julgada. É culpada. E ainda tem enjoo. E outras pessoas grávidas e felizes em volta. E a sua gravidez é um segredo. É inoportuna. Nada está a seu favor. Porque você deu, engravidou e agora quer tirar. Tudo é culpa sua. Às vezes você também acredita que é. Mas ao mesmo tempo acha que quer tirar. Não tem certeza. Não sabe onde nem com que dinheiro. Aí de repente rola. Você decide. Arruma o dinheiro. A clínica. Faz. Porque não basta decidir. Você tem que ir lá e fazer. E dá certo. E aí?

Aí vou me permitir um pequeno devaneio e uma licença poética. Venha comigo. Vamos misturar e confundir um pouco esse cenário, real pra milhões de mulheres, a um cenário singular e também real que virou notícia. Uma menina, estuprada pelo pai, conseguiu uma autorização judicial pra realizar o aborto. E aí? Aí aparece um promotor público, de la nada, pra dizer que dar você quis, né, menina, mas na hora de arcar com a criança você pula fora. Porque é assim. Um homem, que não é o pai, te dizendo que o filho (que você não teve ou não vai ter) é uma punição. Porque você deu. Pra alguém. Em algum momento. Sentiu tesão. Deus que me livre. A gravidez será a punição. Filho, o castigo vivo. Será mesmo essa a mensagem por trás dos contra o aborto? Mulher que trepa é um perigo. Bem feito. Na hora de se esfregar você quis. O que você achou que ia acontecer? Taca logo um filho no colo dela pra ela sossegar em casa e não dar pra mais ninguém. E nunca se esquecer que é nisso que dá ficar dando por aí.

Não dá pra falar desse assunto de forma impessoal. Não existe impessoal aqui. Não se você é mulher. Porque a real é essa: somos nós que decidimos quando, se e como engravidaremos. Isso não é uma proposta, é uma afirmação. É preciso entender essa premissa. E é vital falar dela. Falar. Falar. Falar. Falar até conseguirmos viver num mundo em que a história que contaremos é a da mulher que faz sua escolha, tem apoio familiar, respaldo da lei, orientação médica, realiza um aborto legal e de baixo risco e segue sua vida, em paz com sua decisão, sem chibata moral nas costas. É assombroso que ainda não vivamos nesse mundo. E não podemos perdê-lo de vista. Não sei quem será essa mulher. De quem será essa história. Mas é ela que precisamos contar daqui em diante.