Exigimos ser livres, permanecer vivas e não sentir medo

“Diante de uma das portas da cidade de Granada, o verdugo deu voltas no torniquete até que o colar de ferro quebrou o pescoço de Mariana Pineda. Mariana não era inocente. Por bordar uma bandeira, por não delatar seus conspiradores da liberdade e por negar o favor de seus amores ao juiz que a condenou. Mariana teve vida breve. Gostava das ideias proibidas, dos homens proibidos, das mantilhas negras, de chocolate e de canções suaves”. (Eduardo Galeano)

Por Mariana Serafini

Manifestação em Buenos Aires - Natacha Pisarenko

Na cidade de Mar Del Plata, Lucía Pérez foi estuprada, mas os estupradores não pretendiam matá-la. Lucía morreu de dor. O laudo médico aponta que a moça de 16 anos morreu em decorrência da dor que sentiu ao ser empalada. A promotora responsável pelo caso, Maria Isabel Sánchez, afirmou nunca ter visto antes “uma conjunção de fatos tão aberrantes”.

A morte de Lucía levou milhares de mulheres argentinas às ruas de mais de 50 cidades do país para exigir justiça e, além disso, o direito de ter liberdade, permanecer viva e não sentir medo.

A manifestação foi convocada pelo coletivo NiUnaMenos e rapidamente se espalhou mundo a fora. Além da Argentina, mulheres saíram às ruas do Paraguai, Chile, Peru, Brasil e outros países. Chovia copiosamente em Buenos Aires, como se a cidade chorasse a partida de Lucía, mas nenhuma mulher deixou de sair de casa, do trabalho ou do ambiente de estudo para dar voz ao grito que guardamos na garganta.


Manifestação em Buenos Aires

O levante das mulheres não foi apenas por Lucía, foi por ela também. Este crime brutal não é um caso isolado. E o machismo não consiste apenas no assassinato de mulheres. A ex-presidenta argentina, Cristina Kirchner, publicou um artigo em sua página oficial onde diz conhecer o preço de ser mulher. O preço de de desafiar os que “nos querem caldas, em casa, esperando cautelosas por suas decisões”.

Pagamos o preço de sermos mulheres e agora estamos dispostas a pagar o preço de sermos livres, de permanecermos vivas e de não sentirmos medo. Pode custar caro, mas as centenas de manifestações que invadiram as ruas da América Latina nesta quarta-feira (19) mostraram que estamos dispostas.

Um dia antes destas manifestações, na terça-feira (18), o candidato à prefeitura do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, afirmou que o sucesso do debate – realizado entre ele e seu opositor Marcelo Freixo – se deu devido à “beleza das repórteres que encantaram os espectadores”. Ao falar isso, o candidato não “elogiou” as duas jornalistas, ele menosprezou o fato de que elas estudaram e trabalharam muito para ocupar o posto em que estão.


Manifestações em São Paulo e Santiago, no Chile

As mulheres ainda recebem menos que os homens ao desempenhar as mesmas funções. As mulheres ainda são subjugadas no trabalho por ter direito à licença maternidade, como se o filho fosse “culpa” dela. As mulheres têm sua capacidade intelectual menosprezada no ambiente profissional: se ocupam altos cargos é porque foram beneficiadas por algum homem, se não ocupam é porque, obviamente, são mulheres! Incapazes, afinal.

Estas violências diárias nos calam, mas não nos deixam sem memória e muito menos sem a ânsia de gritar. É por isso que quando tocam em uma, respondemos todas.

Em entrevista a uma TV local, uma das manifestantes em Buenos Aires falou sobre a responsabilidade do Estado. “Se os homens nos matam e o Estado fecha a Secretaria de Atendimento às Mulheres, ficamos sozinhas, o Estado também é responsável pelo machismo”. Ela se referiu ao governo do atual presidente Maurício Macri que, enquanto governador da Província de Buenos Aires, cortou os recursos da secretaria que atendia mulheres vítimas de violência.


Manifestação em Assunção, no Paraguai 

Não só na Argentina, mas em todos os países, se o Estado abre mão da responsabilidade de atender as mulheres vítimas de violência, oficializa a impunidade e generaliza a sensação de abandono. Por este motivo, a PEC 241 de Michel Temer, que estabelece um teto de gastos sociais para os próximos 20 anos é também uma ameça às mulheres. Assim como o Rei da Espanha assassinou Mariana Pineda, no século 19, por disseminar ideias de liberdade, os governos de hoje são responsáveis pela violência ao não desenvolver mecanismos de proteção e atendimento às mulheres vulneráveis.

Lucía tinha apenas 16 anos, como Mariana Pineda, teve uma vida breve. Não sei quais eram seus sonhos, suas angústias, mas certamente, como muitas de nós, em alguns momentos da vida deve ter apreciado chocolates e canções suaves.

Lutaremos para permanecermos todas vivas, livres e sem medo de sairmos à noite sozinhas, de pegar um ônibus vazio, de caminhar pelo campus da universidade, de usar roupas curtas. Lutaremos contra o machismo até que nenhuma de nós seja violentada, ferida e assassinada por ser mulher. Nos queremos todas vivas.