Ação de macacos brasileiros força cientistas a repensar arqueologia

Não há nada pior para o ego que descobrir que não somos tão especiais como gostaríamos. Messi ganhou mais Bolas de Ouro que Cristiano Ronaldo. Bob Dylan tem o Nobel que o escritor japonês Murakami talvez nunca receba. E alguns macacos de 30 centímetros fazem lascas de pedra como os ancestrais mais inteligentes dos humanos. É uma descoberta que obriga a repensar muitas premissas da arqueologia.

Dois dos macacos da Serra da Capivara no lugar onde quebram as pedras - El País

Porque essas lascas criadas por macacos-prego brasileiros são muito similares às dos registros arqueológicos, mas carecem de todos os atributos que costumamos dar a elas: não têm uma intencionalidade tecnológica, não confirmam uma capacidade exclusiva da mão humana e nem indicam que sejam um degrau decisivo na evolução de sua inteligência.

“Talvez tenhamos que revisar muitos trabalhos, inclusive o meu”, diz o arqueólogo Ignacio de la Torre, da University College de Londres, um dos autores da descoberta publicada na revista Nature. “Assumimos uma série de premissas na hora de valorizar a intencionalidade do trabalho com pedras, e agora vemos que isso não é necessariamente assim”, diz esse especialista no estudo do uso das pedras como ferramentas.

Os macacos-prego da Serra da Capivara se reúnem num ponto específico da floresta para quebrar pedras com suas mãos diminutas. Batem as rochas, de forma repetitiva e sistemática, até conseguir parti-las em lascas muito parecidas com as que vimos centenas de vezes nos livros didáticos sobre os primórdios da humanidade. “Quando encontramos essas lascas, costumamos atribuir uma funcionalidade [a elas]. Devemos ter mais cautela a partir de agora”, afirma o arqueólogo.

Parecem peças arqueológicas, mas são lascas produzidas por macacos que simplesmente querem chupar o interior da pedra

Após analisá-las em seu laboratório, De la Torre reconhece que os fragmentos parecem peças arqueológicas. No entanto, são lascas produzidas por macacos que simplesmente procuram chupar o interior da pedra. O objetivo desses macacos não é muito claro – alguns animais, como elefantes e crocodilos, engolem pedras para melhorar a atividade digestiva –, mas o certo é que eles estão muito longe das capacidades evolutivas atribuídas aos hominídeos que começaram a caminhar eretos na África alguns milhões de anos atrás.

Isso não invalida os registros arqueológicos dos primeiros passos da humanidade, dizem os autores do artigo. É apenas uma advertência. Nem todas as lascas produzidas dessa maneira são tão especiais como pareciam. “Inclusive em matéria anatômica, tem sido muito estudada a época em que apareceram as capacidades de manipulação de nossos ancestrais como um passo importante para a chegada dessa tecnologia: esses macacos de pouco mais de 30 centímetros e alguns quilos também são capazes”, afirma De la Torre.

Trata-se de uma descoberta que desafia ideias prévias sobre o nível de desenvolvimento do cérebro e das mãos necessário para produzir essas ferramentas

“Formalmente, suas lascas se parecem muito com as dos registros arqueológicos. E isso é muito surpreendente, pois não têm nada a ver. Eles usam uma pedra como martelo e a batem com força contra outra pedra, produzindo uma fratura concoide [sistema de quebra de materiais com o qual foram produzidas ferramentas na pré-História]. Batem a mesma pedra repetidamente, numa sequência de entalhe não intencional”, descreve o arqueólogo. Depois, limitam-se a chupar a lasca. Existe intenção para romper a pedra de um modo específico, mas não para gerar lascas com uma finalidade posterior.

Grupos de macacos-prego há séculos usam ferramentas para quebrar castanhas de caju, por exemplo. Pensava-se que suas atividades com pedras eram usadas para algum tipo de ritual de acasalamento (daí a espécie ser chamada de Sapajus libidinosus). Surpreendentemente, eles podem produzir lascas que não foram vistas em outros primatas mais próximos dos humanos do ponto de vista evolutivo, como os chimpanzés e os bonobos. Por isso, surgem perguntas importantes sobre a singularidade do comportamento de nossos ancestrais. Porque se trata de uma descoberta que desafia ideias prévias quanto ao nível mínimo de complexidade cognitiva e morfológica – cérebro e mãos desenvolvidos – necessária para produzir essas ferramentas.