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Tom Zé do Correio à Oficina

Correio da Estação do Brás, de 1978, é o último disco de Tom Zé na década de 70, o sexto lançado pelo compositor. Vem após dois discos com formatos mais experimentais, ou ao menos fora dos padrões habituais do mercado, que são Todos os Olhos, de 1973, e Estudando o Samba de 1976.

Por Thiago Cassis*

Tom Zé - Divulgação

O disco, lançado pela gravadora Continental, foi inspirado pela experiência de Tom Zé como repórter de um programa da TV Cultura que investigava a migração de nordestinos em direção a São Paulo em busca de melhores condições de vida.

As influências “territoriais” do disco podem ser lidas na sua contracapa:

Brás (São Paulo – Capital), entre Móoca, Belenzinho e Pari, no começo da Av. Celso Garcia, do seu lado direito, foi inicialmente onde se concentrou a colônia italiana. Hoje uma população preponderantemente nordestina. Seu aspecto é de cidade do interior da Bahia ou Pernambuco em dia de feira. Sotaque nordestino, jabá, maniçoba, sarapatel, farinha de copioba, puxa, quebra-queixo, caçuas, girimuns, fê, guê, lê, mê, nê.

O álbum, ao mesmo tempo em que traz recortes do cotidiano do nordestino que emigra para São Paulo, apresenta também uma reaproximação de Tom Zé com a cultura de sua cidade natal, Irará, localizada no interior da Bahia. Em uma entrevista publicada em 1981 na revista Lira Paulistana podemos ler Tom Zé, em referência ao disco lançado três anos antes, afirmando que: “Eles (os nordestinos) saem de um mundo pré-gutenberguiano… É um salto de 400 anos na história. Na minha terra, aonde não vai TV, é a Idade Média. Imagine desembarcar numa cultura novamente tribal, igual a que eles deixaram, mas além do alfabeto, na terceira revolução industrial, onde predomina uma educação visual desconhecida deles nos quatro séculos de imprensa…”.

Chama atenção no disco, remetendo ao “Correio” do título, a quantidade de canções que se referem às cartas e às distâncias. O pesar do nordestino que abandona sua terra em busca de uma vida melhor e o deslumbramento que as novidades tecnológicas e mercadológicas exercem sobre o individuo que se desloca para a grande cidade são, pelo menos no que tange aos relatos deixados através das letras deste disco, as impressões mais fortes sentidas por Tom Zé no processo de criação do álbum.

Processo se deu por um contato direto de Tom Zé com a população dos bairros centrais da capital paulista, em grande parte formada por nordestinos. Sem nos esquecermos de que o próprio compositor é um nordestino que veio para São Paulo em busca de divulgação e espaço para seu trabalho, embora não na mesma situação muitas vezes miserável que muitos nordestinos do Brás, por exemplo, enfrentam na cidade.

Menina Jesus que abre o disco traz o trecho: “só volto lá quando puder comprar uns óculos escuros. Com um relógio de pulso que marque hora e segundo, um rádio de pilha novo…”. Dessa forma Tom Zé condiciona o retorno do emigrante à sua terra natal à conquista de determinados objetivos materiais. No decorrer da canção entendemos que a volta do individuo só aconteceria se não fosse para ter a mesma vida de antes da partida.

Na sequência uma canção que faz parte do folclore nordestino e que Tom Zé já conhecia muitos anos antes de gravar . A canção se chama Morena e antecede a faixa que dá título ao disco, Correio da Estação do Brás. Nesta última um sujeito que transporta cartas escritas por nordestinos que vivem em São Paulo para parentes que ficaram no Nordeste oferece seus serviços e avisa: “Eu viajo segunda-feira. Feira de Santana. Quem quiser mandar recado. Remeter pacote…” e mais adiante “me dê seu nome pra no caso de o destinatário ter morrido ou se mudado eu não ficar avexado e possa trazer de volta o que lá fica sem dono”.

Assim Tom Zé apresenta a questão da distância e da incerteza das pessoas que longe de suas casas esperam que suas cartas atinjam seu destino e alcancem as mãos de seus parentes.

Na sequencia a canção Carta reforça a temática e mais uma vez relata toda a aflição causada pelo deslocamento forçado, por motivos socioeconômicos, desses nordestinos.

Fechando o lado A, para quem ouve em vinil, vem a faixa Pecado Original, que Tom Zé abre afirmando “aquele que nasce pobre, sem nome e sem cabedal, não pode trazer o peso de um pecado original” para na segunda estrofe então decretar, “de modo que, de acordo com o meu requerimento, perdoado nasce o pobre a partir deste momento”. Problemas sociais e as aflições e condições do nordestino emigrante aparecem no disco, assim como na realidade, relacionados.

O Lado B abre com Lavagem da Igreja de Irará, em uma entrevista de 1992, portanto 24 anos depois do lançamento do álbum, Tom Zé explica o processo de criação desta canção, e afirma que misturou o folclore popular com os personagens da própria cidade de Irará. Sendo essa então uma das primeiras canções que compôs ainda antes de vir para São Paulo no início dos anos 60.

Na canção seguinte, Pecado, rifa e revista, o compositor baiano satiriza a maneira como o "pobre", aparentemente sob o ângulo de uma classe econômica superior, é visto no cotidiano. O trecho a seguir ilustra bem o teor satírico da composição: “Quando o pobre está quieto, está fazendo pirraça. Se está fazendo festa é o efeito da cachaça”. A volta de Xanduzinha dá sequência ao disco com Tom Zé recordando com pesar um carinho não correspondido.

Amor de Estrada ressalta mais uma vez o sofrimento causado pela distância, dessa vez sob a ótica de um caminhoneiro. Essa faixa é uma parceria de Tom Zé com o publicitário Washington Olivetto, que na época era dono da agência DPZ, e que empregou o compositor baiano em 1977.

Para fechar o disco o trecho intitulado Fim do LP (que nada mais é do que as duas últimas faixas do disco) traz duas parcerias de Tom Zé e Vicente Barreto, a primeira, Lá Vem Cuíca uma crítica ao exaustivo uso da cuíca nos sambas da época, a segunda Parada de Sucesso, coloca em suas letras o la–ra-la-ia de Tom Zé em primeiro lugar das paradas. Em comum trazem a temática do próprio mercado musical da época, na primeira como crítica e a segunda como ironia ao colocar o afastado Tom Zé, mercadologicamente falando, em primeiro lugar das paradas.

Porém as apresentações ao vivo que se seguiram ao lançamento do disco traziam novidades para o público: Nos dez minutos finais, depois das músicas do seu novo LP – Correio da Estação do Brás – Tom Zé e seu grupo vão começar a fazer loucuras, como ligar enceradeiras, passar serrote em cano ou destruir agogôs…

Tom Zé na verdade retomava mais uma característica de seus tempos na Bahia, “a possível reunião dos sons em combinações inéditas”.

Em sua oficina, além dos eletrodomésticos e das ferramentas, Tom Zé ainda contava com o que ele chamava de “fontes de leite”, que consistiam de “três gravadores com fitas de sons mixados, operado por uma mesa de controle” , podemos ver ai uma antecipação do que anos depois seria chamado de sampler, pois Tom Zé podia manipular três fitas ao mesmo tempo, recombinando, em diferentes velocidades, gravações já existentes, criando assim novas composições a partir desse material.

Porém com suas experimentações que remetiam à música concreta, e com o que o que vinha produzindo nos anos anteriores a 1978, Tom Zé parece ter ignorado, ou desafiado de forma ingênua, as questões mercadológicas, que sustentavam a possibilidade de se ter como oficio compor, gravar e vender músicas, ao se afastar muito em suas produções do que era consumido na época.

Após Correio da Estação do Brás e toda a experimentação sonora de Tom Zé abre-se um hiato de seis anos sem que o compositor tivesse um projeto aceito por alguma gravadora. Esse período de silêncio foi interrompido com o lançamento de Nave Maria em 1984, sendo este último, aliás, o único disco do compositor durante a década de 80.

Notas

1 Pimenta, H. (org) Encontros – Tom Zé. p. 37
2 Zé, T. Topicalista Lenta Luta p. 32
3 Pimenta, H. (org) Encontros – Tom Zé. p. 41
4 Pimenta, H. (org) Encontros – Tom Zé. p. 20
5 Pimenta, H. (org) Encontros – Tom Zé. p. 69
6 Pimenta, H. (org) Encontros – Tom Zé. p. 197
7 Pimenta, H. (org) Encontros – Tom Zé. p. 34
8 Pimenta, H. (org) Encontros – Tom Zé. p. 35
9 Pimenta, H. (org) Encontros – Tom Zé. p. 35
10Para mais sobre mercado, capital e tropicália, ver Schwarz, R.Verdade Tropical: um percurso de nosso tempo. In Martinha Versus Lucrecia – Ensaios e Entrevistas.

Bibliografia

PIMENTA, H. Encontros – Tom Zé. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2011.
SCHWARZ, R. Martinha versus Lucrecia – Ensaios e Entrevistas. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
ZÉ, T. Tropicalista Lenta Luta. São Paulo: Publifolha, 2009.