Sanha punitivista tomou conta do Brasil, afirma Lenio Streck

Nesta quarta-feira (5), o Supremo Tribunal Federal (STF) julgará a Ação Declaratória de Constitucionalidade 44 (ADC) sobre a possibilidade de um réu condenado em segunda instância da Justiça começar a cumprir pena de prisão, o que para juristas viola o inciso LVII do artigo 5º da Constituição, que estabelece: "Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória".

Por Dayane Santos

Lenio Streck - TVT

Em entrevista ao Portal Vermelho, Lenio Streck, o professor de direito constitucional e um dos subscritores da ADC 44, que foi movida pelo Conselho Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) espera que o Supremo cumpra a Constituição e reverta a decisão de fevereiro deste ano que, por 7 votos a 4, autorizou a prisão após condenação em segunda instância.

“Espero que o Supremo se coloque contra essa sanha punitivista que tomou conta do Brasil. É uma regressão a decisão de prisão em segundo grau”, defendeu o jurista.

O objetivo da ação é que o STF declare a legitimidade constitucional da redação do artigo 283º do Código de Processo Penal, que determina que “ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”.

Lenio destaca que em 2009, o STF passou a respeitar o princípio da presunção de inocência. “A decisão dizia em linhas gerais que onde estava escrito presunção da inocência leia-se esgotar todas as instâncias. E essa decisão estava correta”, disse o jurista, ressaltando que, como consequência dessa decisão, em 2011, o Congresso aprovou o artigo 283, do CPP, em conformidade com o decidido.

“Em 2016, o Supremo resolveu dar uma virada sobre a sua própria decisão e voltou aos tempos de 2009, passando a admitir que depois do segundo grau passasse a prender as pessoas. Não concordamos com isso porque a leitura que fazemos da Constituição é que onde está escrito presunção da inocência deve se ler presunção da inocência”, afirma.

“Queremos que o STF diga que a lei que o Parlamento fez [artigo 283º] é constitucional. O Parlamento só fez a lei porque o Supremo havia julgado em 2009. Se o STF mudar de ideia agora ele tem que dizer que essa lei é inconstitucional”, reforçou.

Segundo ele, a mudança de posição em 2016 não foi uma coincidência. “É exatamente nesse clima e no imaginário que se criou que o Supremo decide mudar. Quem garante que daqui para frente o Supremo não decida alterar outro direito? O STF não pode reescrever a Constituição. Quem faz lei é o Parlamento. É o Parlamento diz que o Supremo em 2009 acertou”, destaca.

O julgamento da ADC começou em setembro. O único a votar foi o ministro Marco Aurélio Mello, relator da ação. Ele reconheceu a constitucionalidade do artigo votando no sentido de determinar a suspensão de execução provisória da pena que não tenha transitado em julgado e, ainda, pela libertação dos réus que tenham sido presos por causa do desprovimento de apelação e tenham recorrido ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), com exceção aos casos enquadráveis no artigo 312 do CPP, que trata da prisão preventiva. Segundo ele, a constatação da culpa só ocorre com o julgamento em última instância.

No voto, o ministro também destacou o alto grau de reversão das sentenças penais condenatórias no âmbito do STJ que, segundo ele, demonstra a necessidade de se esperar o trânsito em julgado para iniciar a execução da pena.

Lenio endossa o argumento do ministro. Para o jurista, "é falacioso" a justificativa de que garantir o direito constitucional de presunção da inocência e não prender em segunda instância é para beneficiar os ricos.

“Números mostram que só a Defensoria Pública de São Paulo leva centenas de réus pobres exatamente para se beneficiar deste tipo posição anterior a 2016. Os tribunais erram seguidamente na aplicação da lei. Os tribunais são conservadores no segundo grau. O Supremo é muito mais garantista. Se o segundo grau obedecessem a jurisprudência do STJ e do STJ, menos necessidade se teria de recorrer às decisões”, salientou Lenio.

Dados do Relatório Estatístico do STJ afirmam que a taxa média de sucesso dos recursos especiais em matéria criminal variou, no período de 2008 a 2015, entre 29,30% e 49,31%.

Salientou ainda que números apresentados pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo apontam que, em fevereiro de 2015, 54% dos recursos especiais interpostos pela instituição foram ao menos parcialmente providos pelo STJ. Em março daquele ano, a taxa de êxito alcançou 65%. Os mesmos índices são em relação aos pedidos de habeas corpus, na razão de 48% em 2015 e de 49% até abril de 2016.

“Sabe por que em um ano o Supremo julga 7 mil habeas corpus? Porque alguém indevidamente prendeu pessoas no segundo grau”, disse o professor, que também rebate a tese de que tal medida seria um instrumento de combate à impunidade desejado pela população, como defende alguns membros do Judiciário, como o juiz Sérgio Moro.

“A opinião pública transformada pela mídia produz um impacto grande nesta questão. No entanto, a Constituição é um remédio contra a maioria. E o Supremo é o guardião do remédio contra a maioria. Além disso, não há dados concretos de que a população quer isso. É uma fabricação da grande mídia. Todos querem menos impunidade, isso é evidente. E se quisesse isso, ainda assim o STF não pode levar em conta, caso contrário, não precisaria mais nem da Constituição e nem do Supremo”.

Segundo ele, a ideia de que aumentar penas e prisões diminui a impunidade não resulta em redução da criminalidade. “Na Inglaterra do século XVIII, transformaram o furto de carteiras em pena de morte. Pegaram os primeiros quatro batedores de carteira, condenaram à morte e enforcaram em praça pública. Muita gente foi assistir. Foi o dia que mais se bateu carteira na Inglaterra”, conta.

O jurista destaca que é muito mais uma questão social do que criminal. “Um estudo feito por Alessandro Baratta compara a Suécia com a Somália e constatou que tanto num país como no outro tinham índices baixos de criminalidade. Motivo? Porque na Suécia só tem rico e na Somália só tem pobre. O problema está nas distâncias sociais. Quando mais distante e maior a concentração de renda, mais criminalidade gera”.