Encontro com o poeta Gustavo Felicíssimo

O escritor Urariano Mota relata, de forma emocionante, como conheceu o poeta Gustavo Felicíssimo e como se portou diante de sua poesia: “Então eu me comovo e fico meio estúpido, como é meu costume, como é comum entre indivíduos que ficam sem defesa”

Leia o relato na íntegra:

Em 12 de setembro, recebi pelo Facebook esta mensagem:

“Olá,Urariano, como vai? Meu caro, é possível que você não me conheça. Sou Gustavo Felicíssimo, poeta, e toco lá na Bahia, há cinco anos, uma pequena editora, a Mondrongo. Sou amigo de Rosel e João Filho. Deste último, aliás, editei A dimensão necessária, livro vencedor do Prêmio da Biblioteca Nacional 2015 no gênero poesia. Bem, sou um amante do Recife e leitor do seu Dicionário Amoroso. Nele há um verbete belíssimo sobre Alberto da Cunha Melo, de quem sou profundo admirador e, segundo Ângelo Monteiro, uma espécie de continuador da Retranca, forma poética por ele criada e que você deve conhecer bem. Há alguns anos lancei no Recife, com o apoio de Cláudia Cordeiro, o livro Procura & Outros Poemas, somente com poemas escritos nessa forma. Por fim, o que mais me leva a escrever-lhe é a vontade que tenho de conhece-lo, quem sabe acompanhados de uma boa cerveja. Estou no Recife acompanhando minha filha em um tratamento médico e fico por aqui, em princípio, até o próximo domingo. Saudações”.

Fui pesquisar na internet, mas de imediato não descobri o autor da mensagem. Culpa minha: eu pesquisava por “Gustavo Veríssimo”. Num ato falho, eu associava o poeta ao sobrenome superlativo do maior cronista brasileiro, Luis Fernando Veríssimo. Mas a realidade era outra e mais coerente.

Devia procurar por Gustavo, Felicíssimo. Então pude ver:

“Gustavo Felicíssimo

Nascido em Marilia (SP), em 1971, está radicado na Bahia desde 1993. É escritor. Fundou, com amigos, o tablóide literário SOPA, em Salvador, do qual foi editor. Cursa Letras na UESC/BA. Tem artigos publicados em diversas revistas e sites especializados em literatura. É editor da Mondrongo Livros – a editora do Teatro Popular de Ilhéus. Seus livros são: Diálogos: Panorama da Nova Poesia Grapiúna, Silêncios, Outros Silêncios e Procura e Outros Poemas. Venceu o Prêmio Bahia de Todas as Letras, edição 2009, em duas categorias: Poesia e Literatura de Cordel. Venceu o Prêmio Nacional Patativa do Assaré de Literatura de Cordel (Minc). Venceu o prêmio Yoshio Takemoto de literatura (SP), edição 2011, nas categorias Conto e Poesia. Teve o conto Os Bagos do Professor selecionado para publicação pelo Concurso Internacional Cataratas, de Foz do Iguaçu (PR), e o conto O Amigo de Caymmi premiado no Concurso Maximiniano Campos de Contos (PE), edição 2011”.
E respondi ao escritor:

“Se não houver jogo do Sport, a gente marca no sábado. Ou no Recife, no Mercado da Boa Vista, ou em Olinda, no Bar de Peneira (com preferência pelo Peneira, que é lugar muito agradável também). Tanto um quanto outro são bons. O Mercado da Boa Vista é ‘verbete’ no Dicionário. Mas o bar de Peneira entra em meu próximo romance. Foi lá que um personagem fundamental do novo livro teve uma conversa iluminante sobre literatura”.

E voltou o poeta:

“Vi no titio google que sábado não tem jogo do Sport, mesmo assim marcamos no Peneira, não é? Diga apenas o horário”.

E respondi:

“Sim, então no Peneira, Por volta do meio-dia. As paredes do bar têm ilustrações de J. Borges. Fica nos Quatro Cantos de Olinda. O Peneira (apelido do dono do bar) é uma figura. Bonachão, buchudo, mulato à maneira de Caymmi. Quase Zen. E se você tiver sorte, ele estará tocando frevo no som do bar. Os clientes, em sua maioria, são artistas ou amantes das artes”.

E fui, confesso que meio desconfiado. Como era mesmo aquilo? O autor da mensagem seria um poeta ou um inimigo da poesia? A gente vive num meio tão safado, em que a literatura reproduz sem qualquer mediação o cinismo do golpe hoje no Brasil, que não acreditei de imediato na verdade desse encontro. Chego atrasado, mas ainda assim chego primeiro. A pessoa que marcou não estava. Vou às mesas e pergunto: “Alguém aqui é Gustavo?”. Ninguém é. Mau sinal, penso. É fria? Imagino: vão entrar pela porta e fuzilar um escritor. Eu devia estar acompanhado de amigos que soubessem atirar mais que poemas e romances ao mundo. Que fossem rápidos no gatilho, no reflexo e na pontaria. Dos que ferem a pistola no gatilho. Tenho algum? Não, mas devia ter. Um do gênero Antônio das Mortes ou Corisco, pulando do filme de Glauber Rocha para as ladeiras de Olinda. “Te entrega, Corisco…”. A pessoa que espero bem que me dissera antes na mensagem do Face:

“Notei que seu alter ego tem como seguidor o meu amigo, conterrâneo e uma das catedrais da minha formação, Sérgio Ricardo”

Faz sentido agora. Sérgio Ricardo é o autor imortal da canção de Deus e o Diabo na Terra do Sol. Mas este aqui, amador nas armas, fico míope a me encandear com a luz do sol às 13 horas da tarde. À espera de Deus ou do Diabo – a que situação a literatura me leva. Três doses depois, eis que um cidadão entra, meio jovem, meio maduro, e me faz uma pergunta de pistoleiro:

– Você é Urariano?

Confirmo, antes do pá, pá, pá. E vem o tiro da poesia:

– Eu sou Gustavo Felicíssimo.

Sentamo-nos e começamos. Ali naquela mesa, sei, e não posso dizer na hora em que sentido, conversei com o meu amigo Luís do Carmo antes do seu último dia. Assim narro no romance que virá, ainda inédito:

“Então vejo que à porta do Bar do Peneira passam jovens sorrindo, olham, sorriem e nos acenam. Respondemos num impulso, mas como no filme de Chaplin o aceno era para outra pessoa no bar. E sorrimos do engano. Então, na quinta dose, chegamos não sei como ao que é crucial para Luiz do Carmo, ao que é um valor mais alto que a puberdade tardia de Goethe. E lhe digo, não sei por qual movimento do álcool ou do gelo no álcool:

– Os seus textos são elogiados, Luiz.

Então ele me olha surpreso, curioso, e me faz uma intimação da verdade:

– Por quem?

– Pelas pessoas, pelos intelectuais em quem temos confiança.

– Mas quem? – Luiz do Carmo pergunta com os olhos ainda mais arregalados. E lhe respondo:

– Por Zacarelli, por exemplo. Você sabe, Zacarelli é um grau de competência intelectual entre nós.

– Eu sei, é um amigo – ele me responde, entre a descrença e o crédito.

– E José Carlos Ruy, e José Reinaldo, que são intelectuais de valor e comunistas.

– Eu sei. Mas são generosos, são camaradas.

Entendo o que Luiz do Carmo deseja. E o compreendo porque somos da mesma natureza. Ele, como todo escritor, possui uma dúvida absoluta sobre o próprio talento. Não importa em que ponto de reconhecimento universal se encontre, para o escritor sempre haverá a dúvida numa hora da madrugada: ‘E se tudo for mentira? E se toda essa louvação for um engano? Passado este momento, este presente, não ficarei esquecido, como tantos medíocres?’. Eu não gosto da fama do meu nome, dizia-se um personagem de Tchekhov. Eu entendo a angústia de Luiz do Carmo, mas não posso deixar de me comover diante da sua ansiedade.

– Quem me elogia?

– Muita gente. Zacarelli, Ruy, Reinaldo…

– São amigos.

– Sim, mas são competentes e honestos. Eles não elogiam o medíocre dos amigos. Mas, se você quer mesmo saber, eu ponho de lado a minha amizade, e lhe digo: você é um escritor como poucos hoje no Brasil. – E com o máximo de objetividade eu lhe falo, de modo mais claro: – Você possui contos em que a síntese de ambiente, de personagem, obedece ao gênero do conto e à narração madura de um escritor na sua melhor forma. – Eu lhe disse, e não tive pudor de abraçar e saudar o talento do escritor na hora da sua dúvida. – Olhe, você escreveu sobre a enchente, a cheia na cidade de Palmares, que em toda imprensa eu não vi igual ou sequer próximo, ao revelar a tragédia de pessoas do povo que ficam sem nada. Não vi igual. O impacto daquela crônica/reportagem é permanente. E sabe por quê? – continuo e exalto, e sinto que os ouvidos no Peneira se abrem, e curiosos acompanham o que aqueles conspiradores em Olinda falam tão íntimos. – Sabe por quê? É pela realização literária. Os escritores, quando fazem reportagem e estão com o diabo no couro, eles usam recursos da alma para falar do objetivo”.

Agora ali, com Gustavo Felicíssimo, é como um reencontro com a literatura, com um criador no mesmo lugar. Na verdade, começo a notar, é um encontro com a poesia e o poeta em uma só pessoa. O que um dia Gustavo dedicou à filha, nas palavras: “Tenho fé no homem e na literatura como instrumento para emancipação humana. Por isso quero para mim alguma as palavras de José Marti”, o que ele dedicou à filha, conversamos à mesa do Peneira de outro modo. Mas o conteúdo é igual, nos permitam.

E conversamos sobre a ausência de um pai como a lembrar Juan Rulfo em Pedro Páramo. Estamos frente à frente e lhe refiro um que conheci, cuja máxima era “bato num filho como quem bate num inimigo”. E bebemos no Peneira sem que possamos nos brindar. Mas sei por experiência e confirmo, aqui mais uma vez,que os nomes fazem pessoas. Ninguém, por exemplo, leva à toa na vida o nome de Maria. E se for unido como sobrenome a um Antônio, será um homem a cantar como poucos a mulher. Antonio Maria, essencial cronista e compositor de “Nunca mais vou fazer o que meu coração pedir…. Ó vento não faz barulho, meu amor está dormindo. Que o mar não bata com força”. Então um poeta cujo sobrenome é Felicíssimo, notem, pode um dia ter sido infeliz, pode ter tido momentos de infelicidade, mas a sua inclinação é para o lado menos sombrio da vida. O que não significa ser frívolo, alienado ou falseador da realidade mais cruel. Ele apenas não ficará a cavoucar feridas com um gosto mórbido.

Sei, sabemos que o medíocre toma conta da mídia em todas as formas e conteúdos. Vende-se falsidade como poesia e literatura. Enquanto isso, no Peneira,há um poeta que é um artista sério sem fama, um escritor que alia o sentimento à procura da melhor tradição poética. Um homem que lê, estuda, pesquisa, reflete, escreve, reescreve. Que é também um teórico da história da literatura, pois me fala à mesa sobre modernistas que arrasaram como bárbaros a qualidade de Olavo Bilac, que me acorda para as correções de Antônio Cândido, na Formação da Literatura Brasileira, depois da obra de Graciliano Ramos, José Lins do Rego e Jorge Amado. Esse poeta não está aqui na terra e na Terra “de graça”. Ele não passa os seus dias a troco de nada. Se não, vejam:

“A treva e o lume
Um grande livro é um grande mal
Calímaco
Um grande livro é um grande mal,
tão necessário quanto a treva
por onde a luz emerge, insurge,
ele é o farol que alto se eleva
por sobre o mar e seus mistérios,
sobre as geleiras, hemisférios;
um grande livro é uma janela
por onde o Ser se observa, é fogo,
fulgor e chama, é caravela:
aceita, pois, esse animal
que um grande livro é o melhor mal.”
 

Não é à toa que Gustavo Felicíssimo se aproxima da poesia pernambucana, não é por acaso que ele estuda e pratica magnífico, disciplinado e maestro, a retrança do poeta Alberto da Cunha Melo. Antes da extraordinário elegia para o nosso poeta Alberto, Gustavo escreveu quando Alberto se foi:

“‘Uma das principais vozes poéticas da literatura brasileira contemporânea, o poeta Alberto da Cunha Melo faleceu nesse sábado (13), às 19h35, aos 65 anos, na UTI do Hospital Jayme da Fonte, onde deu entrada na última quinta-feira, com infecção respiratória’. Dessa forma eu recebi via e-mail a notícia da morte desse esplendoroso poeta pernambucano, autor de 16 livros, 13 de poesia, entre os quais destacam-se Oração pelo poema, Recife: UFPE, separata da revista Estudos Universitários, 1969, Yacala, Recife: Gráfica Olinda, 1999, ambos republicados pela editora A Girafa em 2003 juntamente com os inéditos de Meditação sob os lajedos, livro que foi considerado um dos dez melhores publicados no Brasil em 2002, por um júri de 400 especialistas do Prêmio Portugal Telecom de Literatura Brasileira, em sua primeira versão de 2003 e O cão de olhos amarelos, Editora A Girafa, prêmio de poesia 2007 da Academia Brasileira de Letras. Pegou-me desprevenido essa notícia, pois, em recente mensagem a mim enviada, sua esposa, a Sra. Cláudia Cordeiro, falava em ‘recuperação milagrosa’. Chorei!”

Agora, na mesa, ele me mostra e fala este tributo e fraternidade de talento:

Elegia para Alberto da Cunha Melo

Outro chope, garçom
Sentimos sede porque a realidade é fuga
e fugaz o tempo se apresenta
Sentimos sede porque a realidade é crua
e terríveis os seus desdobramentos
Tão terríveis quanto a razão que contraria a fé
a vida envolvida em mistérios
e essa vertigem
que me toma a pena e me oferece este poema
A garota no quadro segurando um gato é triste
como é triste a condição humana,
como é triste o horizonte que nos margeia
Contudo, não será capaz a noite de evitar-te o gênio
Por isso essa Elegia, essa vertigem no ventre da noite
esse copo de chope e o linguajar vulgar
pois os seus poemas são os meus poemas
– neles me reconheço e me edifico –
uma vez que o tempo gasto
com inúteis procelas não nos alimenta
porque em essência
somos feitos de suavidade e compaixão
Eu sei não ser preciso esse poeta eivá-lo de loas
mas quiseram as Musas que fosse assim
quiseram os anjos
e a pomba pousada sobre os livros sagrados
que fosse assim
Mestre e desequilibrista da poesia brasileira
próximo aos teus poemas não tenho horário
(não percebo o tempo esvair)
próximo aos teus poemas o momento é outro
e outras são as formas do existir
próximo aos teus poemas tenho a lua
tenho os pélagos
próximo aos teus poemas estou mais próximo de mim
Agora vai, viaja no infinito
que a despedida é dispensável
Leva consigo as nuvens e o silêncio da borboleta
leva no coração os dias floridos
enquanto ficamos aqui, vivendo essa Casa Vazia.”
 

Na mesa do Peneira não escuto mais os frevos. Eu me calo e reflito. Eu sei a chave, o poema a que Gustavo Felicíssimo se refere no último verso. É a este, de Alberto da Cunha Melo:

“Casa vazia

Poema nenhum, nunca mais,
será um acontecimento:
escrevemos cada vez mais
para um mundo cada vez menos,

para esse público dos ermos
composto apenas de nós mesmos,

uns joões batistas a pregar
para as dobras de suas túnicas
seu deserto particular,

ou cães latindo, noite e dia,
dentro de uma casa vazia”.

Então eu me comovo e fico meio estúpido, como é meu costume, como é comum entre indivíduos que ficam sem defesa. Só consigo dizer “é muito, muito bonita a sua elegia para Alberto”. E me lembro da última visita que fiz ao grande poeta no Hospital, no lugar onde não foi possível a sobrevivência a um transplante, e pude ver, e me doeu ver o mais fundo desamparo nos olhos do poeta. De lá eu saí para um restaurante popular na Praça Chora Menino, e entornei um copo inteiro, repleto de cachaça de uma só vez, porque amarga, amaríssima era a despedida a um amigo. Bebi e nada senti, a não ser uma raiva sem expressão e sem remédio. Então ressoam em mim estes versos na mesa do sábado no Peneira:

Agora vai, viaja no infinito
que a despedida é dispensável
Leva consigo as nuvens e o silêncio da borboleta
leva no coração os dias floridos
enquanto ficamos aqui, vivendo essa Casa Vazia.
 

E continua a ressoar este momento em outro poema de Gustavo Felicíssimo:

“Epílogo
tudo é para sempre um instante,
mesmo as horas, mesmo as miragens,
mesmo as árias de um rouxinol
e tudo quanto mais amamos”
 

Então saímos do bar e fomos andando a descer a ladeira. Fizemos de conta que estávamos conversando, mas cada um de nós caminhava a ouvir um eco da tarde. A vontade que eu tinha era de sair falando poesia, mas na minha limitação eu estava apenas remoendo. Uma semana depois, em casa, leio um belo título de um poema do poeta felicíssimo: “O que não tenho é o que sou”. Mas na hora, ao descer a Prudente de Morais, eu não sabia. Apenas vi o poeta seguir feliz para Itabuna.