Austeridade não pode ser um fim em si mesmo, diz economista

Criticar o ajuste fiscal proposto pelo governo, assim como a PEC 241, que propõe um novo regime fiscal para os próximos 20 anos, “não se trata em si de negar a validade de medidas para conter o déficit público, mas principalmente da forma de fazê-lo e da dosagem”, afirma o economista Pedro Dutra Fonseca à IHU On-Line. Isso significa dizer, explica, que a “austeridade” não pode virar “um fim em si mesmo”.

Pobreza, austeridade

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Dutra adverte que não é razoável manter nem uma postura austericida, que consiste em “defender a austeridade a qualquer custo, esquecendo-se das mediações

políticas”, nem “um tipo de pensamento heterodoxo que acha que o déficit não é problema”. Para além dessas duas possibilidades, esclarece, “há alternativas tanto econômicas quanto que não violam as regras básicas das leis vigentes”. Entre elas, o economista sugere uma “reforma tributária”.

“O próprio imposto de renda bate na alíquota máxima em cerca de 1.400 dólares. No mundo civilizado é aí que começa a tributação e não onde termina a alíquota. Um professor que ganha R$ 5 mil alcança a mesma alíquota de quem percebe R$ 50 mil ou um jogador de futebol que ganha R$ 500 mil. Acredito que qualquer pessoa com um senso mínimo de justiça social não pode concordar com isso. E esse debate passa ao largo de toda a discussão”, critica.

Para Fonseca, a proposta da PEC 241 de estabelecer um orçamento fixo para as áreas de saúde e educação “não só contraria o chavão dos políticos de todos os matizes, para quem demagogicamente sempre ‘saúde e educação são prioridades’, como do próprio presidente em exercício, que assim se manifestou em seu discurso de posse”.

Além disso, ressalta, a PEC “afronta o pacto social da Constituição de 1988, o qual assentava que o apoio a ambas era caminho eficaz para melhorar a distribuição de renda e reverter os precários indicadores sociais”.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O que é o austericídio? Por que afirma que ele não é a melhor alternativa para enfrentar o momento econômico que o país vive hoje?

Pedro Dutra Fonseca – O uso do termo austericídio designa um tipo de comportamento, muito comum atualmente, de defender a austeridade a qualquer custo, esquecendo-se das mediações políticas. O neologismo foi usado recentemente em artigo de Delfim Neto e literalmente seria uma aglutinação para designar algo próximo à “austeridade que pode matar”. Não se trata em si de negar a validade de medidas para conter o déficit público, mas principalmente da forma de fazê-lo e da dosagem.

O austericida defende que tudo seja feito rapidamente, esquecendo que numa sociedade democrática cortar gastos e/ou elevar impostos significa arbitrar ganhos e perdas e, portanto, exige negociação. Também não vê barreiras: quer atropelar a Constituição, a legislação trabalhista, os direitos adquiridos e os programas sociais. A austeridade vira um fim em si mesmo. A política e as leis para ele só são vistas como entraves: a única lei que respeitam é a do mercado.

Ora, não existe nenhum país em que os mercados sejam totalmente desregulamentados, simplesmente porque a civilização evoluiu em sua história para a criação de instituições que estabelecem regras de convivência, limites ao poder estabelecido, garantias individuais e sociais. A crise não pode ser pretexto para atropelar as leis e a Constituição; justamente estas existem para garantir a convivência social em tempos difíceis, pois se o mundo não fosse conflituoso elas seriam desnecessárias.

IHU On-Line – Como o senhor avalia a proposta da PEC 241, que propõe um novo regime fiscal? Quais são os pontos negativos e positivos dessa PEC e quais serão suas implicações, caso aprovada?

A proposta da PEC 241 consiste numa fórmula aparentemente indolor, que o ministro chamou de “nominalismo”: manter as despesas no atual nível e reajustá-las no limite da inflação do ano anterior. Pretende-se com isso cortar a tendência de expansão real dos gastos dos últimos anos e que, com o esperado crescimento do PIB, a participação relativa das despesas caia como proporção deste. Mas o ajuste, se realizado, não será pouca coisa. Mas no caso de saúde e educação há medida adicional: extinguir as vinculações legais que consagram a essas áreas uma porcentagem mínima do orçamento.

PEC 241

Na prática, o que isso significa? Ora, se o montante total do orçamento está “fixado” ou “congelado”, a única razão para acabar com as regras de um percentual mínimo para saúde e educação é porque se pretende, explicitamente, que essas áreas percam participação no total das despesas. Em outras palavras, pagarão em dose dupla: pelo vínculo à inflação do ano anterior, como todas as outras; e pela extinção da tal regra do mínimo. Isso não só contraria o chavão dos políticos de todos os matizes, para quem demagogicamente sempre “saúde e educação são prioridades”, como do próprio presidente em exercício, que assim se manifestou em seu discurso de posse. Afronta, ademais, o pacto social da Constituição de 1988, o qual assentava que o apoio a ambas era caminho eficaz para melhorar a distribuição de renda e reverter os precários indicadores sociais.

A outra medida mais séria é propor que a PEC deve ter vigência por vinte anos. Quer dizer que todos os governos daqui para a frente ficarão engessados? Que a população não pode decidir seu futuro através da política, manifestando-se através do voto? Se o próximo governo democraticamente eleito quiser mudar a regra, respaldado no voto, não pode? Decidir o que, quanto e como cortar gastos ou aumentá-los não é matéria constitucional, é o dia a dia da política, depende dos ciclos políticos e econômicos, e para isso existem partidos, eleições, organizações sociais, sindicatos.

Se o estabelecimento do teto, da forma como está proposto, é criticável por seu caráter antissocial, a vigência de duas décadas com pretensões de imutabilidade é de um autoritarismo sem precedentes. Toda sociedade tem conflito distributivo e há regras e formas para administrá-lo. Essas podem variar ao longo do tempo, faz parte da democracia. O congelamento da regra suprime a política e a soberania popular. Isso não tem nada de esquerdista. É bom se ler Montesquieu: o governo, por ter maioria eventual numa assembleia, não pode violar direitos básicos, inclusive de minorias; há um princípio de limitação de poder. Do contrário teremos um liberalismo econômico emoldurado por uma política a la Mussolini.

IHU On-Line – O que seria uma alternativa ao austericídio e ao novo regime fiscal que o governo considera necessário fazer? No curto prazo é possível uma alternativa à PEC 241? Qual?

É óbvio que há alternativas tanto econômicas quanto que não violam as regras básicas das leis vigentes. Não há como botar a sujeira embaixo do tapete: se há déficit público significativo, ele deve ser enfrentado. Há um tipo de pensamento heterodoxo que acha que déficit não é problema. É o austericida com sinal contrário, já que este propõe enfrentar o déficit a qualquer custo. Um aspecto positivo da PEC, e talvez o único, é que propõe que o combate seja gradual, ao longo do tempo, pois isso permitiria acerto de rotas caso necessário, de forma que se pudesse administrá-lo. Digo permitiria, pois a vigência por vinte anos acaba por violar esta flexibilidade.

Ora, o que pesou sobremaneira nos últimos anos para elevar o déficit público foram as isenções fiscais e os subsídios a empresários, cerca de R$ 500 bilhões. Este foi um grande equívoco do governo anterior. A expectativa era que tais isenções incentivassem os investimentos e, com isso, crescesse a produção e o emprego. Isso não ocorreu e não é novidade: no Brasil o crescimento induzido pelo setor público sempre foi pelo lado da demanda e não da oferta. Essa é a primeira coisa que deveria ser revista.

Reforma tributária

A outra é uma reforma tributária, pois os impostos no Brasil são altamente regressivos. O próprio imposto de renda bate na alíquota máxima em cerca de 1.400 dólares. No mundo civilizado é aí que começa a tributação e não onde termina a alíquota. Um professor que ganha R$ 5 mil alcança a mesma alíquota de quem percebe R$ 50 mil ou um jogador de futebol que ganha R$ 500 mil. Acredito que qualquer pessoa com um senso mínimo de justiça social não pode concordar com isso. E esse debate passa ao largo de toda a discussão.

IHU On-Line – Como o senhor recebeu a notícia de que o governo Temer pretende pôr em curso um conjunto de 34 concessões e privatizações nos próximos dois anos?

Concessões e privatizações não são um bem nem um mal em si mesmas, dependem do que se vai conceder ou privatizar e em que condições. Então é difícil falar abstratamente, a não ser que se veja a questão pelo lado de princípios. Há quem condene toda privatização por uma questão ideológica, enquanto outros defendem privatizar tudo, também por princípio doutrinário. O austericida se encaixa nessa última postura.

Entendo que ambas são equivocadas, cada caso é um caso. O mercado é eficiente para alocar riqueza, para atender quem tem renda, mas péssimo para enfrentar a pobreza e as desigualdades. Restaurantes e padarias, por exemplo, assim como a produção de calçados ou vinho, não fazem o menor sentido serem estatais. Já quem não tem renda não tem acesso ao mercado e deve ser atendido de outra forma. Por exemplo: escolas e hospitais públicos e/ou gratuitos ou subsidiados sempre serão necessários, pelo menos num futuro visível. O que não é possível é que as privatizações sejam feitas com dinheiro público, patrocinadas pelo BNDES, como aconteceu na década de 1990. E sem regras de reversão e/ou controle público, sem metas a cumprir, nem de preços nem de investimentos.

Não é à toa que no Brasil um dos setores campeões em reclamação dos consumidores seja o de telefonia, um serviço público que foi privatizado, ampliou-se quantitativamente, democratizou-se o acesso, mas com baixa qualidade e preços altos. Há o mito que sempre o privado é mais eficiente. Tenta ligar para um 0800 do setor para pedir qualquer esclarecimento ou fazer uma simples reclamação e veja como é tratado.