Netto, o general rebelde

Há 180 anos, em 11 de setembro de 1836, era proclamada a República Rio-grandense, no Campo dos Menezes. No dia anterior, a 1ª Brigada Ligeira de Cavalaria do Exército Liberal derrotara as forças imperiais próximo ao Arroio Seival, em Bagé. A Batalha do Seival, como ficou conhecida, ensejou a proclamação da República do Rio Grande e foi a que teve, pela primeira vez, a decisiva participação dos Lanceiros Negros.

Por Joan Edesson de Oliveira*

General Netto

A proclamação da república foi lida frente às fileiras rebeldes, que somavam naquele dia e local poucas centenas de soldados. O homem que a redigiu e a leu para os combatentes era então o comandante daquela brigada, o Coronel Antonio de Sousa Netto, um dos mais fascinantes personagens da Farroupilha ou Guerra dos Farrapos.

Netto foi um daqueles personagens históricos que parecem ter vivido em permanente estado de guerra. Abolicionista, republicano, encarnou como poucos a identidade rio-grandense. Foi um daqueles personagens belicosos, feitos de rebeldia, construídos com o fogo da guerra e da aventura, metal forjado num fole que soprava o vento quente da liberdade.

Quando proclamou a república em 1836 Netto contava apenas 33 anos de idade. Muito jovem, já era, entretanto, um dos mais respeitados combatentes e comandantes das tropas farroupilhas. Não começara ali sua trajetória guerreira, nem tampouco a encerraria tão cedo. Anos antes, na Guerra Cisplatina, com pouco mais de 20 anos, Netto já havia se destacado como Capitão de Milícias.
Conta-se que Garibaldi afirmava não haver conhecido melhor cavaleiro, mais habilidoso com a montaria, do que Bento Gonçalves. Exceto talvez, dizia o revolucionário, o General Netto.

Excelente cavaleiro e, na tradição gauchesca, respeitoso cavalheiro. Em 1837 o coronel Gabriel Gomes Ribeiro, imperial, preferiu morrer lutando de espada em punho do que se render aos homens de Netto. Este, finda a batalha, fez desfilar os seus soldados em homenagem ao adversário que morrera de forma heroica. O inimigo era bravo, e merecia de Netto todas as honras por isso.

Netto foi, provavelmente, um dos generais que mais lutou na Farroupilha, dos que participou do maior número de batalhas, quase sempre, espada em punho, à frente dos seus homens. Olhou a morte de frente inúmeras vezes e disse não a ela em todas as oportunidades. Com a paz de Poncho Verde Netto preferiu retirar-se para a Banda Oriental. Os negros que o acompanharam como homens livres devem ter sido os únicos a escapar da perfídia de Porongos.

Um homem como Netto não haveria de se apascentar tão facilmente. O Império sempre o olhou com desconfiança, vigiando-o e acompanhando os seus passos. Por sua vez, o General sempre se colocou como defensor da pátria, mas não como combatente imperial. Foi assim que fez a campanha contra Aguirre e foi assim que fez também a campanha contra Lopez, na Guerra do Paraguai.

Ali o veterano guerreiro, aos 63 anos, fez sua última guerra, combatendo como vanguarda do General Osório, velho adversário na campanha farroupilha. Levou o seu exército pessoal e comandou uma brigada ligeira que esteve à frente da invasão do Paraguai, no Passo da Pátria. Na batalha de Tuiuti, defendendo o flanco da tropa brasileira, Netto foi ferido e enviado para um hospital em Corrientes, na Argentina. Ali morreria, em 2 de julho de 1866. Vivera em guerra, morrera na guerra, aquele que fora, talvez, o mais consequente dos líderes farroupilhas.

Tabajara Ruas, no seu belo “Netto perde sua alma”, narra de forma poética a morte do general rebelde. Com febre, exausto, sucumbiu à doença e aceitou o convite de Caronte, entrando em sua barca:

“Olhou para o céu escuro. Lembrou-se da lua no dorso dos cavalos. Procurou a lua, mas só encontrou o reflexo prateado do seu resplendor. Aproximou-se da canoa pisando vagaroso a areia macia, já sem pressentimentos, sem cautela, sem olhar para o Vulto, sentindo a mordida fria do ar, dominando o narcisismo desatento, recuperando com satisfação a tolerância, a paternalidade, sentindo-se sagaz e dissimuladamente majestoso. Olhou a praia deserta. (Agora, o vento estava a favor). Netto empurrou a canoa e saltou para dentro dela.”

Há 150 anos, o velho general perdeu sua última batalha e apeou do cavalo da vida, corcel árdego, sempre pronto a corcovear com os desavisados que lhe cavalgam.