Juíza questiona existência da meritocracia em uma sociedade desigual 

Na análise que fez sobre a existência da meritocracia defendida pela elite no Brasil, a juíza Fernanda Orsomarzo, do Tribunal de Justiça do Paraná, em artigo publicado no Jornal O estado de São Paulo, nesta sexta-feira (9), destaca que “olhando de fora a tragédia social que me cerca, eu reafirmo: não é justo que entrem, em iguais condições, nessa insana competição por um lugar ao sol. Não é justo jogar em seus ombros todo o peso da ausência de políticas estatais.” 

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Ao analisar o regime político democrático no Brasil, “a Constituição Federal de 1988 previu, dentre os objetivos fundamentais da República, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, bem como a erradicação da pobreza e da marginalização, com a progressiva redução das desigualdades sociais. Nota-se, ainda, a preocupação com a promoção do bem de todos, sem discriminações de qualquer natureza (artigo 3º, incisos I, III e IV).”

Para a jurista, ao fazer constar na Lei maior tais princípios, os constituintes pretendiam estabelecer metas a serem atingidas além da de uma simples “igualização estática”. Mais que coibir práticas discriminatórias, segundo Orsomarzo, “deve o Estado implementar e viabilizar iguais oportunidades aos indivíduos, como meio de se corrigir as injustiças oriundas da política de exclusão das minorias promovida desde o processo de colonização do País.”

Portanto “apontar a responsabilidade do Estado na vida dessas pessoas, exigindo sua atuação efetiva, não se trata de mero discurso ideológico ou, ainda, de ‘coitadismo’. Trata-se da correta interpretação do texto constitucional e do sistema internacional de proteção dos direitos humanos, do qual o Brasil é signatário”, defendeu a jurista, para que “o mérito deve ser medido a partir da igualdade de oportunidades.”

Para ela, somente “ao ser comparada com alguém que teve iguais condições a mim, tenho, sim, mérito. Do contrário, tenho privilégio.” E conclui, alertando aos meritocratas: “A todos, sem distinção, é possível a conquista de seus objetivos. Contudo, é ingênuo acreditar que a vontade, apenas, pode materializar sonhos. É preciso mais. E a observância à Constituição Federal, o contato com a realidade social que nos cerca e um toque de empatia são os primeiros passos na direção da justiça e da igualdade. O resto, aí sim, fica com o indivíduo.”

Forma velada de aristocracia

A magistrada cita, em sua análise, o voto do Ministro Marco Aurélio (STF), por ocasião do julgamento da ação que tratava da constitucionalidade da política de cotas étnico-raciais para a seleção de estudantes da Universidade de Brasília (UnB), que afirmou: “A meritocracia sem igualdade de pontos de partida é apenas uma forma velada de aristocracia”.

E, ao avaliar as cotas sociais, direcionadas a pessoas de baixa renda, usa sua experiência profissional, contanto que “ao me tornar juíza de direito, foi inevitável não encarar e questionar a realidade social que ultrapassa as barreiras físicas do meu gabinete”, conta a juíza, citando vários casos da vida real.

“Vi meninos e meninas que andam descalços e trabalham duro na roça, desde cedo, a fim de auxiliar a renda familiar. Conheci um garoto de 12 anos com dentes podres e analfabeto. Tive contato com crianças que sequer sabem o que é um computador. Descobri que uma menina de 14 anos nunca havia comemorado seu aniversário. Conheci crianças que frequentavam a escola tão somente em razão da merenda.”

E conclui que “olhando de fora a tragédia social que me cerca, comparando minha história à vida dessas pessoas, eu reafirmo: não é justo. Não é justo que entrem, em iguais condições, nessa insana competição por um lugar ao sol. Não é justo acreditar que podem ser guiadas pela fé, apenas; há que existir algo mais palpável. Não é justo jogar em seus ombros todo o peso da ausência de políticas estatais.”

“Ao longo da minha vivência como cidadã, e não apenas como magistrada, notei que, para muitos, o esforço pessoal não era suficiente. Faltava algo”, lembrando que casos como o do Ministro Joaquim Barbosa, negro e de origem pobre, ou do apresentador de televisão Silvio Santos, que trabalhou como camelô, são exceções.

Para ela, “pautar nosso raciocínio em pontos ‘fora da curva’, além de revelar certa dose de desonestidade intelectual, remete-nos à conclusão de que teria faltado força de vontade às pessoas que, nascidas nas mesmas condições do Ministro e do apresentador, não tiveram o mesmo destino. E tal afirmação, sabemos, é esdrúxula.”

Cerne da polêmica

Na avaliação da jurista, o cerne de toda a polêmica “consiste na necessidade do reconhecimento de privilégios”, enfatizando que “ao falarmos de meritocracia, voltamos nossa atenção exclusivamente ao mérito, deixando de lado a condição de vantagem que alguns grupos de indivíduos têm em relação aos demais.”

E destaca que “nascer branca no seio de uma sociedade racista e de tradição escravocrata é, inequivocamente, um privilégio a ser considerado. Há uma dívida histórica para com o povo negro: foram 354 anos de escravidão oficial. A abolição, teoricamente ocorrida há 130 anos, jamais significou a inclusão social do negro, que sofre até hoje as consequências desse nefasto período da História.”

Segundo pesquisa divulgada pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e pelo Instituto Ethos, apenas 4,7% dos cargos executivos das 500 maiores empresas brasileiras são ocupados por negros. De acordo com o censo realizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), no ano de 2014, 1,4% dos juízes brasileiros são negros. E o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), que traz dados de dezembro de 2014, 61,6% da população carcerária o Brasil é composta por pretos e pardos.

Benefícios X cicatrizes

Ela cita o rapper norte-americano Talib Kweli, que, na opinião dela, resume bem a ideia sobre a meritocracia: “Nenhuma pessoa branca que vive hoje é responsável pela escravidão. Mas todos brancos vivos hoje colhem os benefícios dela, assim como todos os negros que vivem hoje têm cicatrizes dela”.

Portanto, “a conscientização dos privilégios advindos da branquitude é o primeiro passo para que reconheçamos a importância das ações afirmativas como meio de inclusão social e econômica de um povo cujas reivindicações são sistematicamente ignoradas pela sociedade e pelo Estado”, afirma.

Para comprovar sua fala, a jurista lembra que essa “invisibilidade” dos negros é diariamente denunciado pelo movimento negro por meio de diversos grupos, dentre os quais a Unegro, Uneafro, Educafro e Negrex. “Porém, enquanto eu, branca, fui ouvida ao tratar do assunto, negros são absolutamente silenciados e ignorados”, atesta a magistrada.